Menção Honrosa em Conto/Crônica
O homem que queria ser quinta-feira
Philipe Hugo Fransozi
O homem que queria ser quinta-fera estava sentando a horas na cozinha de seu apartamento. O tempo se desdobrava lentamente buscando seu fim. O fim do gozo dos amantes. Todos os objetos naquela cozinha olhavam o homem que queria ser quinta-feira com asco, enojados com a cólera que aquele pobre homem transpirava. Era domingo, estava no avançado da tarde e logo a lua alumiaria as ruas e os amantes caminhariam risonhos, delirantes, inebriados por tudo aquilo que o homem que queria ser quinta-feira desprezava naquele domingo. “Morta a serpente, morre o veneno”.
O tempo engatinhava no universo do homem que queria ser quinta-feira. O copo, sobre a mesa, estava lá há horas no mesmo lugar, o gato, sob a cadeira, assanhava-se entre suas pernas, mas isso não o comovia. A bebida tinha dilatado seu pensamento. As idéias já não eram tão reais. O coração já estava frouxo. O gato insistia, estava faminto, o homem que queria ser quinta-feira havia se esquecido dos compromissos, da rotina, do domingo. Começava sentir a leveza do ser. Não queria aquilo. Estava com ódio, pânico, agonia, medo, estranheza diante daquilo que o homem que queria ser quinta-feira pensava que deveria estar sentindo. “Morta a serpente, morre o veneno”.
- Basta! – disse ele. Saltou da cadeira. A garrafa em cima da mesa titubeou, rodopiou e manteve-se em pé, rígida, elegante, tenaz, seduzindo o pobre que anteviu a ruindade que a garrafa ia aprontar e no salto a deu costas. Agora estava livre. O gato sorriu: “Pobre homem!” pensou. A garrafa não se deu por vencida. Deseja consumir aquele homem. Retirar sua vivacidade. O tempo para. O homem sente que a garrafa o deseja. Deseja consumir tudo aquilo que o homem que queria ser quinta-feira despreza nesse domingo. “ele não vai resistir. Pobre homem!” pensou o gato levantando-se indo em direção ao sofá. Ele se virou. A garrafa olhou para ele, flertou-o. O espaço entre os dois dobrou-se quase a ponto de rasgar. Um passo. Um passo era o suficiente para o homem entregar-se, deixar que a garrafa despejasse na sua boca o esquecimento, a desilusão, dilatando o pensamento, tornando as idéias irreais, afrouxando o coração. Foi o que fez. Apanhou-a com vigor, levantou até a altura da boca e começou a se esquecer. Imediatamente sofreu. Não queria esquecer, queria lembrar cada segundo vivido na quinta-feira que ele queria ser. Rompeu o encanto com a garrafa, atirou-a contra a parede. Ela morreu. Seu sangue escorria pelo piso de madeira. O gato miou: “escolheu o pior caminho. Pobre homem!” pensou o gato. Enfurecido consigo, saiu. Abriu a porta, desceu as escadas tropeçando no próprio desespero. Parou. Ultrapassou a porta, estava na calçada. “Não sabes amar, não sabes / Em vão estendo os braços.”
O que buscam as pessoas na vida? Você já se perguntou o que você busca na vida? O que o homem que queria ser quinta-feira busca na vida? Quantas quintas-feiras você gostaria de ser? É estranho imaginar o homem que queria ser quinta-feira como uma carcaça velha, um invólucro de vísceras, merda, sangue e dentro disso tudo há um homem que escolheu ser e aceita a condição. De todos os caminhos que o homem que queria ser quinta-feira teve na vida o que o levou a escolher os caminhos que o guiaram até esse ponto? Somos produto das nossas escolhas, ou nos moldados na imaginação, esperança das escolhas que deixamos de lado? É estranho observar o homem que queria ser quinta-feira sentado há horas na sua cozinha. Ele já estava chegando ao fim. O fim do gozo dos amantes. Colocou a foto dos filhos ao lado do copo: “eles ficarão bem” sussurrou. Fazia anos que não os via ou eles não o viam. Nem a luz fazia questão de vê-lo, de onde estava era difícil enxergar o sol no fim da rua. Sentado na sua cozinha, aguardava a enfermeira que o levaria até sua cama. Não caminhava, não tinha pernas, não conseguia mais seguir caminhando em busca do momento. Não tinha forças para sugar a felicidade da vida, não tinha nem forças para segurar sua própria vida que estava escorrendo por um ralo qualquer de um banheiro de beira de estrada, fedendo a bosta de prostitutas, viciados e pederastas. Sentiu a brisa que entrou pela janela da sala. Lembrou do mar, de sua esposa, da quinta-feira. Sentia saudades dessa trindade. O vento se tornou mais intenso, sentiu um chamado vindo naquela brisa, mas não poderia responder, nem ir atrás. Não tinha mais escolhas para serem tomadas. Nem a de se sentir sozinho podia evitar. Nem a de sentir qualquer coisa. Não podia mais encontrar a sua quinta-feira. Restava apenas aguardar a morte da serpente e esperar que o veneno morresse junto. Ouviu o assoalho ranger, secou as lágrimas: – Pode me levar para cama. Disse o homem com um tom lúgubre na voz. Passou pelo sofá, viu o gato deitado: “Pobre gato!” pensou o homem que queria ser quinta-feira.
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