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 03dez 

Texto contemplado com 1º Lugar em Conto/Crônica

 

Troco um Quintana por um café

Gleber Pieniz

Maldita dor de garganta! Maldita dor de cabeça! Nessas tardes de chumbo, frio e trabalho, um café poderia me salvar até a alma, mas os professores que recheiam a caixa azul-concreto dessas oficinas já beberam todas as últimas gotas das garrafas térmicas das pontas das mesas. Engano o mal-estar com uma fatia de cuca e, junto com ela, engulo bocaditos linguísticos: “coffee break” não significaria “interrupção no fornecimento de café” em algum dialeto rabugento?

- Posso recitar uma poema?

- Claro! Posso comer enquanto recitas?

- Fique à vontade, não vai demorar…

A garota sorri detrás dos óculos de armação metálica. Como os demais artistas arrebanhados para esse evento, ela veste calças pretas, camiseta branca padrão e traz na cabeça um chapéu extravagante, de tecido grosso, multicor e macio, que minha memória insiste em confundir com um chapéu de palhaço, de bobo da corte ou de mágico. Melhor não perguntar ou tentar esclarecer, mesmo porque o poema já lhe escapava dos lábios e me aconselhava a não dividir meus segredos mesmo com meu melhor amigo.

- Esse é o poema “Da discrição” do Mário Quintana.

- Obrigado. Mais rápido que uma cuca.

Circulo entre gente de boa e má sorte, facilmente diferenciadas por terem ou não um copinho marrom fumegante entre as mãos. Outra maga em preto e branco me aborda – essa menos formal – e, sem me perguntar se queria um poema, sai defendendo com palavras e gestos largos as maravilhas de se amar em silêncio. Seus olhos verdes vagos não combinam com a convicção da voz.

- Esse é um poema do Mário Quint…

- Hoje o Quintana está em promoção?

- Não, não, estamos apresentando outros autores, também…

- Tá bom. Estou brincando. Desculpa se te interrompi. Se estivesse tomando um café, talvez minha boca ocupada fosse mais paciente contigo.

- Que nada, tudo bem.

Vejo uma mulher fumando, do outro lado da multidão. Coisa rara: é a única fumante entre dezenas de apreciadores vorazes de café. Cabelos curtos, tingidos de um castanho que precisa de retoques, tão apastelado quanto os tons de roupa que usa. Parece mais velha, mais magra, mais séria e mais abatida que qualquer outro participante do encontro. Penso: é assim porque fuma? Fuma porque é assim? Concluo, dispersivo: onde há fumaça, há fogo.

Desvio dos bem-aventurados-aqueles-que-têm-café (porque deles é o reino dos céus), deslizo rapidamente pelo perímetro da muvuca e, já com o cigarro na mão, prestes a pedir o isqueiro emprestado, me vejo ameaçado sob a mira do poema engatilhado de outra chapeluda.

- Um poema do Mário Quintana pra você.

- Que outros poetas vocês têm no repertório, hein?

- Ah, tem Vinícius de Moraes, Camões, Fernando Pessoa…

- E por que só me recitam Quintana?

- Não sei. Talvez porque seja mais curtinho, mais fácil de decorar do que os outros.

- Então tá, vou te facilitar o trabalho: aceito o teu Quintana em troca de um café.

- Como assim?

- É bem isso: se tu me trouxeres um copo de café, podes recitar até dois Quintanas, na boa.

Talvez por falta de café, talvez por falta de domínio de outro bardo, minha boba da corte e os outros chapéus recitantes foram se empoleirando na escada, revezando seus poemas a partir de degraus cada vez mais altos, até desaparecerem no ar, junto com a fumaça do meu cigarro.

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