Arquivo da Categoria Coisas da vida
26out
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Ela era a mais bonita entre as sete mulheres daquela família. A primogênita de uma estrutura que, como acontece até hoje, tinha mais pose do que posses. Pelas crenças do grupo familiar, seria a primeira a casar. E com alguém “de bem”, o que, nesse caso, não significava, necessariamente, que o candidato a marido ostentasse qualidades como ética, dignidade e honestidade. O cara tinha que ter grana.
Muito vaidosa, cedo começou a preparar o enxoval, requintado, com peças caríssimas em bordado inglês e similares. Só que os anos foram passando, as irmãs foram casando e a primeira continuava ali, sonhando com o tal príncipe encantado. Até que a vida a surpreende, aos 50 e poucos, em meio a centenas de empoeirados itens, espalhados pelo quarto, absolutamente só. Os pais se foram, as irmãs construíram seus núcleos. E ela continuava ali, sonhando acordada…
Não fazia ideia de quantas vezes mandou lavar cada peça, empilhou e desempilhou louças, panelas, acessórios de cozinha, vários conjuntos inteiros de toalhas de um enxoval que envelhecia junto com sua dona, mas não perdia o élan.
E então, um belo dia entre os que a encaminhavam rapidamente para a casa dos sessentas, alguém bate à porta. Ela abre e balbucia um emocionado “pois não” ao homem grisalho que logo entra e começa a mostrar diversos seguros para todas as ocasiões. Ela compra um, na promessa de que ele voltaria para entregar a apólice e tomar outro café com a agora nova cliente.
Na data marcada, ele é surpreendido por uma recepção ímpar. Mal pisa a sala de estar, vê surgirem as irmãs, os maridos, os sobrinhos e sobrinhas. Sobre a mesa de centro, um magnífico estojo guardava precioso brilhante. E, logo à frente, a mesa posta com todo requinte, aguardava os alegres convivas.
O coitado não sabia o que fazer. Fora apenas entregar uma apólice de seguro e agora estava na iminência de participar de sua própria festa de noivado. Mas ficou muito tocado pela situação e não quis dizer, ali, na frente de todos, que era casado, tinha filhos e netos e que havia um “pequeno equívoco”. Em vez disso, sorriu. Colocou o anel no dedo dela, brindou com Veuve Clicquot, participou do lauto jantar e alimentou os planos da noiva sobre a lua de mel em Veneza. No final da noite, beijou a testa de sua pretendente, despediu-se da família, entre sorrisos e promessas. Nunca mais voltou. Ela morreu, dia desses, oitenta e poucos, em uma sofisticada residência para idosos. Foi enterrada com seu inseparável anel de brilhantes.
19out
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Uma amiga me conta o papo nonsense a que foi submetida, dia desses, por um prestador de serviços que esteve em sua casa. Chamado para pintar as paredes da sala de estar, o distinto rapaz se preparava para iniciar o trabalho quando, sem quê nem mais, largou tudo, chegou bem pertinho de minha amiga e disse a ela: “A senhora está vendo o que estou vendo?”. Sem entender a situação, minha amiga fez cara de paisagem. E o rapaz continuou: “Este ser de luz, de mais de dois metros de altura, que está a seu lado.”
Agora, a cara de paisagem cede lugar à de espanto – não pela suposta presença do tal feixe de luz, mas pela insanidade do interlocutor. Ela sorri, meio nervosa, diz que não vê nada e muda de tema. Ele acena que sim com a cabeça e segue narrando a bizarra visão, acrescentando que o ser vinha de um planeta xis – ou Y – e tinha a missão de proteger a cliente e sua família.
É claro que nesse ponto minha queridíssima amiga já estava quase em pânico. O cara falava com tal convicção, chegando a citar as coordenadas cósmicas do endereço do tal planeta, de uma constelação tal, onde, aliás, garantia ele, as crianças já nasciam educadas e disciplinadas porque aquela civilização era muito evoluída.
A dona da casa seguia entre muda e perplexa, mal conseguia menear a cabeça e responder às loucuras do cara com singelos sorrisos. E o cara seguia a reproduzir as falas do tal ET que, agora, já se sentara sobre a lona que protegia o sofá e discorria sobre as diferenças entre as crianças terráqueas e as de seu planeta. Lá, há centenas de milhares de anos-luz, a população se reproduzia mentalmente – se estava na hora de aumentar a prole, os pais se conectavam mentalmente e pariam, instantaneamente, um novo ser. Que, diga-se, já nascia pronto. “Coisa mais sem graça”, riu minha amiga, agora já levando na brincadeira.
Só que o rapaz se ofendeu com a atitude de sua interlocutora. Reiterou que falava muito sério e que as risadas dela fariam com que o seu protetor se retirasse. “Ao menos ele é bonito?”, questionou a divorciada senhora, ainda divertida. O pintor, então, perdeu a paciência. “Não vim aqui para ser zoado”, respondeu, enquanto juntava seu material. Em poucos segundos, acenava para ela do portão, dizendo que nunca mais o chamasse para nada. Minha pobre amiga deixou-se cair no sofá, na esperança ainda de pegar um colinho intergaláctico. Não conseguiu, infelizmente, sentir a presença do tal ser – e, pior, sua sala está até hoje sem pintura.
13out
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
A cada 60 minutos, cinco meninas e meninos são agredidos no Brasil, segundo dados do Unicef. Um público especialmente vulnerável à violação de seus direitos e à pobreza, a criança brasileira, ainda que esteja hoje em situação bem melhor do que no passado recente, segue em alto risco: se 29% da população vivem em famílias pobres, entre as crianças este índice é de 45,6%. Considerando o último censo, quase 60 milhões de cidadãos e cidadãs têm menos de 18 anos – ou seja, 27 milhões de brasileirinhos e brasileirinhas não têm as condições mínimas estabelecidas pela Constituição brasileira e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
E os números ainda continuam muito, muito feios. Crianças negras têm mais 70% de chance de viver na pobreza do que as brancas. E embora o País esteja próximo de alcançar o chamado ODM4 – Objetivos do Milênio, no quesito da mortalidade infantil –, infelizmente, as disparidades continuam: crianças pobres têm o dobro de chances de morrer em relação às ricas, e as negras, 50% a mais do que as brancas.
Reporto esses números porque me surpreendi com o movimento de gente comprando brinquedos para a criançada, neste 12 de outubro. Nada contra, claro, que nossos meninos e meninas merecem tudo o de melhor que pudermos oferecer. No entanto, queria ter a certeza de que tantos presentes não substituam o amor, primeira e maior responsabilidade da família para com eles. Lembro esses números para que possamos nos conscientizar do privilégio que temos ao poder homenagear nossos pequenos com roupinhas novas e joguinhos da moda.
Compartilho esses números, também, porque, em viagem ao Nordeste, há bem poucos anos, ainda chorei ao perceber meninas de menos de 14 anos abraçadas a louros turistas, pelas ruas e praias – alguém me comentava, à época, que era aquela a única esperança de redenção para as mirradinhas e alegres moçoilas. Quem sabe o cara as levasse para a Europa, para ter uma vida boa…
O tema adolescência é, aliás, quase tragédia. Ainda temos o imenso desafio de resolver a questão dos meninos e meninas chamados infratores. Afinal, não os queremos por perto porque detestamos esse tipo de espelho e eles são o exato reflexo de nossas não ações. Segundo o Unicef, a cada ano, 30 mil adolescentes recebem punições restritivas de liberdade – e apenas 30% deles foram condenados por crimes definidos por lei. E, sim, temos que fortalecer a família. E não me venham com chorumelas: família é todo núcleo formado pelos laços do amor. Feliz Dia das Crianças.
28set
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Nas redes sociais (sempre elas), encontro uma interessante foto de um grupo de pessoas se apertando sobre uma cerca que as separava, muito provavelmente, de algum evento artístico. Na imagem, 99% das pessoas empunham seus celulares e câmeras para fotografar a apresentação – menos uma velhinha, que permanece estática, absolutamente absorta, parecendo desfrutar de verdade do espetáculo, pela expressão de alegria em seu olhar.
E a discussão que se segue: o que é mais importante: viver aquele momento único, desfrutar dele, inundar a alma de beleza e arte ou simplesmente captar a melhor imagem para compartilhá-la depois? O que nos é mais necessário, afinal, a arte a nos habitar os poros e as entranhas ou essa mania meio água parada de registrar eventos para, depois, exibir, todo orgulhoso, a foto de seu próprio vazio?
E então me parece que essas gerações da vida virtual são gente em fragmentos. A instantaneidade e o acesso fácil a todo tipo de informação forjam desautores de nossa própria existência. E, agora, o que importa é o que está do lado de fora de nós – de preferência, nada de nós, para tentar desatar.
Ano passado, uma foto de um grupo de jovens ensimesmados em seus celulares – sem ligar a mínima para o quadro de Rembrandt a seu lado – causou muito debate. Estamos mesmo perdendo a capacidade de perceber com plenitude, de acolher, de receber ao menos na pontinha da alma as sensações, as emoções, as cores e os odores da vida?
E então não nos emocionamos mais com Elis Regina cantando Atrás da Porta, de Chico Buarque, em sua primeira parceria com Francis Hime. No máximo, teremos boas fotos de Maria Rita no show em homenagem a sua mãe. Isso se soubermos quem é a mulher que, aos 36 anos, deixou este planetinha azul em silenciosas dores e um imponente hiato, em um tempo em que os dias doíam tanto.
Alguém comenta, então, que a emoção deixa de fazer sentido na vida porque o tempo em que vivemos hoje é líquido. Passa por nós sem deixar vestígios. Mergulhamos em suas cores, mas, ao enxugar os excessos em nosso corpo, restam apenas arremedos de sensações. Nada mais nos chega à essência.
Aliás, a expressão “tempos líquidos”, cunhada pelo sociólogo polonês Zygmund Bauman – que associa o conceito ao amor, em sua obra mais famosa –, talvez traduza melhor as nossas dores de pessoas quase retrôs. E não no sentido da moda, mas da vida: nada mais é feito para durar, para se desfrutar, para se apropriar emocional ou literalmente. Mas, como a velhinha da foto citada no início deste texto, há que resistir – e sair das selfies, um pouco, para mergulhar na magia da vida. E da arte que a define.
21set
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Quero dizer que amo aquela deliciosa terra da gente mais gente que já pude compreender. Amo as paisagens montanhosas, o cheiro das araucárias imponentes, a fumaça das lareiras, o vinho colorindo a alma, a cachorrada linda, solta na vida.
Amo aquelas estradas sinuosas e as entranhas da terra, embranquecidas de um frio gostoso, que faz bater mais alto e forte o coração. Amo aqueles cascalhos em que não se pode caminhar de salto alto. Porque é ali a síntese exata da mais singela sofisticação do viver.
E, não há como não dizer, fiquei apaixonada pelas ruas bucólicas e as pessoas serenas, que passam por nós sorridentes, com a calma e a convicção de que a vida precisa ser degustada suavemente, como quem sorve o mate amargo em meio à prosa ou transcende ao sabor insistente, mas delicado, da truta. O tempo, ali, é mesmo relativo e abundante.
Devo gratidão a pessoas tão atenciosas como sutis, como o Enio, a Sandra, a minha tocaia Ana. E às artesãs da grande alquimia do sabor, Líria e Caciana, impecáveis anfitriãs de uma noite esplendorosa, entre risotos, vinhos e filés – com uma chuvinha alegre, para marcar o ritmo de um inegável prazer.
Lá eu vi a Pedra Furada segundos antes de ser engolida pela neblina. Vi a paisagem mais instigante e terna, ao redor do território escolhido por um lindo par de azulões, que cantava a poucos metros de nossa varanda. Dormi ao som inigualável de uma belíssima queda d´água – eu, que sou exigente com sons, que nasci meio música, meio verso. Despertei cedinho, notívaga que sempre fui, sob a bênção majestosa de indescritível sol.
E passeei entre montanhas, vales, desvãos.
Urubici, nome indígena que, para alguns é xokleng e significa pássaro brilhante, para outros é tupi e indica a “terra mãe da água gelada”, pode muito bem ser traduzida pelo cantinho mais paraíso da serra catarinense.
Lá eu vi, antes de tudo, a leveza de ser. A exuberância da natureza ofuscando a palavra e sendo, ela própria, o léxico de quem se permite enxergá-la assim, verde esperança de que tudo à nossa volta, afinal, algum dia, possa ser contaminado por tamanha luz.
Foram, então, tempos de paz no recanto mágico em que se recolhem todas as mágoas, se acanham as dificuldades, se desintegram as tristezas – e não porque ignoradas, mas por se indexarem, também elas, à transcendência que o livre oxigênio nos faz respirar.
E eu, que não vi a lua cheia, me fantasiei de estrelas – o refúgio tão necessário.