Arquivo da Categoria Coisas da vida
31ago
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Por uma estranhíssima coincidência, escrevo exatamente no seu aniversário – 28 de agosto. Dia desses, após longa ausência, o revisitei, em função de textos profissionais. Nunca o conheci suficientemente, muito além do que os meios acadêmicos permitem. Nunca, tampouco, o idolatrei como poeta ou filósofo – minhas escolhas universitárias, neste particular, sempre se voltaram a autores menos clássicos e mais… por assim dizer… engajados.
Li Fausto, porém. E aquela tragédia toda, aquele simbolismo tão bem estruturado da vida de seu autor e a busca incessante pelo tal sentido da vida, tudo isso me tocou profundamente – tanto que chegava a conversar com meu pai sobre esses temas, na minha adolescência. Pueril, sempre pensei nele como uma alma absolutamente torturada – como sempre imaginei que o fossem os grandes poetas e pensadores da humanidade.
Mas se há algo que aprendi com ele foi que, se nos empenharmos com todas as nossas forças por aquilo que queremos, o universo há de conspirar a nosso favor – esta sempre foi a minha máxima, também por obra e graça de meu pai.
O alemão Johann Wolfgang von Goethe é dessas figuras cuja obra transcende a vida e cuja alma transborda pelas veias abertas do planeta – e de todos os outros mundos que existirem dentro ou fora de nós. Passou um tempo enorme adormecido dentro de mim – mas estava presente em tudo o que faço, pondero, projeto, sonho ou abandono.
Gosto de pensar que sou também produto da loucura de Goethe, de suas tantas paixões, de seus relacionamentos impetuosos, de sua trajetória. Evidentemente que um cara que, para mim, cunhou a expressão mais profunda da palavra humanidade, não cabe nessas linhas.
Certamente, não chegaria a extremos como Fausto, não pactuaria com Mefisto, não teria a coragem de me debater, sem trégua, entre o bem e o mal. Mas acredito firmemente que Goethe não poderia ser mais atual. O mago que disse que o homem coloca palavras onde faltam ideias é o mesmo que se deleitou em flores e cores.
Mas, apesar de sua trajetória de grande personalidade, de sua importância para a literatura mundial e de seu papel político na Alemanha do final do século 18, início do 19, Goethe não chegou a ser o mito de hoje. Ele, que tentou confrontar a teoria de Newton sobre as cores – e promoveu grandes quiproquós na comunidade científica, sem nunca ter sido levado a sério – saiu da vida triste, velhinho e só. Um fechar de cortinas em preto e branco para quem sempre procurou, da luz, suas origens e ilações. Feliz aniversário.
10ago
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
O casal decidiu ir almoçar fora, naquele sábado meio tédio. Um tempo razoável, até que elejam o restaurante, se arrumem e saiam, meio distraídos, meio desencanados, preocupados apenas em não ficar em casa naquele radiante dia de sol e calor. No caminho, conversam sobre música, seu tema favorito – e, claro, fazem novos planos para a próxima viagem, que ainda nem sabem se será possível…
O restaurante está cheio, muita gente teve a mesma ideia de mergulhar nos sabores do galeto da hoje distante Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Sem problemas. Conseguem uma mesa na varanda e não deixam de reconhecer a gentileza do garçom, ao pedirem as bebidas. Sem álcool, claro, naquele dia lindo, nada de ir para casa dormir após a refeição.
Suco e água de coco à mesa, o marido convida sua dama ao bufê de saladas. Saem conversando baixinho, mas, de repente, o homem para, como se fora mesmo tomado por algum insano espírito, e grita: “Nãoooo!!! Cebolas!!!!”. Ato contínuo, se atraca à delicada salada de cebolas, quase abandonada em um cantinho do bufê, como se fosse um manjar dos deuses. A mulher não quer acreditar, mas o companheiro tem, em mãos, um prato imenso, cheio até as bordas, da tal salada.
O burburinho, claro, já havia se generalizado ao redor deles. Todos queriam ver quem era o adorador de cebolas em cena. Ele, no entanto, não se preocupou com o impacto de sua atitude diante das outras pessoas, voltou à mesa e ficou lá, todo feliz, rolando suavemente o garfo e admirando aquela enorme quantidade de anéis mergulhados em azeite e enfeitados com a verde salsinha.
E seguiram, na boa da conversa, ânimos acalmados em todo o recinto, até que a sofreguidão inicial do homem deu lugar a uma clara desaceleração do ato de degustar a salada. Mas o gaúcho não desiste e segue contando casos e engolindo, agora um a um, os tão cobiçados anéis.
A mulher ainda ria da situação quando o marido acena para o garçom: “Meu bom rapaz, você me traria uma daquelas embalagens para viagem? É que sobrou um pouco da minha salada e quero levá-la para meus gatinhos…” A esposa, entre atônita e constrangida – eles sequer tinham gatos em casa –, pega a bolsa, paga a despesa, entra no carro e deixa o homem lá, parado, com uma quentinha cheia de salada nas mãos. “Ué… O que deu nela? Não podia deixar sobrar este tesouro. Afinal, o quilo de cebola está custando os olhos da cara!”. E lá se foi Salim, a pé, sob um sol escaldante, mas feliz da vida, com sua porção, quase troféu.
04ago
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Foi ele próprio quem me pediu que escrevesse. Com a chegada dos dois bebês, os netos caçulas, a vida deu uma acelerada e meu loirinho, que agora já tem nove anos, também meio que se ausentou um pouco de mim, mergulhado nos irritantes vídeos do tal Minecraft. De aniversário, em julho, ganhou um par de fones de ouvido todo descolado. Então, eu quase não andava conseguindo falar com ele.
Mas a coisa foi corrigida – seus pais são bem atentos e impuseram disciplina, horários e regras. Meu loirinho segue com excelentes notas na escola e nos surpreendendo, quase todos os dias, com palavras e expressões bem rebuscadas para sua idade. Como, dia desses, quando tive de repetir o que dissera, em função dos benditos fones. Tirou imediatamente os ditos cujos, me fez uma carinha linda de arrependimento e tascou um “Desculpa, vó, sei que isso é inadmissível.”
Meu cérebro de vovó nem lembrava mais o que queria dizer diante do impacto que a palavra tão bem dita provocou em mim. São mesmo meio mágicos, os corações infantis. Se nos surpreendem milhões de vezes, também nos encantam e nos emocionam outras incontáveis em exíguos e inusitados espaços e tempos.
E essa fase de meu loirinho é interessantíssima – porque ele tem a exata compreensão de tudo à sua volta, mas se ensimesma, às vezes, por pura preguiça de se posicionar sobre as coisas. “Nem vou discutir”, ri ele, quando a irmã, quase 18, o repreende por algum raro deslize. Ao contrário, me segreda que tem muita paciência com ela, que ainda é “meio adolescente”.
Mas se há uma qualidade em que meu pequeno Lucas se distingue da maioria dos piás de sua idade é o amor que inspira todos os seus atos. Uma criança explicitamente amorosa, como poucas que conheço. Nunca recusa um abraço e toma a iniciativa de se “grudar” em mim, sempre que tem vontade.
É, também, um gurizinho extremamente solidário – porque muito atento ao que acontece em seu entorno. Se está feliz com os presentes que recebeu, acha alguma maneira de se lembrar de um amigo ou outra criança que não tem os mesmos privilégios que ele – e é incrivelmente agradecido por tudo o que tem.
Não sei se nos próximos anos vai ter o perfil típico da fase das transformações hormonais. Provavelmente não escape de uma ou outra natural beligerância familiar – mas até aqui, é ele o imenso laço de amor e de alegria que nos faz a vida muito mais colorida, todo santo dia. Feliz novo ano, meu piazito lindo.
27jul
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Eu fico feliz bem assim, à toa. Com um pássaro cantando à minha janela, meu neto caçula sorrindo, minha neta me fazendo agradinhos, um toque sutil de carinho, venha ele de quem vier. Eu fico feliz com uma frase de um amigo, com delícias musicais, com o final de um tempo de esperas, com bate-papo de boteco. Eu fico feliz com a minha própria paz que, vez em quando, se manifesta em seu silêncio e solidão.
Também fico feliz com crianças brincando, com pôr de sol, com chuva fininha e aquele friozinho gostoso, que convida a um bom filme, uma pipoca e um cobertor a dois. Fico muito feliz com poesia boa, histórias bem escritas e textos sem muitos erros gramaticais nas redes sociais.
Esses tempos de alegria são momentos que nos traduzem, no dia a dia, e nos reinventam a trajetória, enchendo de cor cada curva do caminho. Recentemente, aconteceu um desses instantes de perenidade que me encheu de orgulho e felicidade. A segunda Vara de Família de Florianópolis justificou com a “prevalência do afeto” a decisão, penso que inédita no país, de autorizar que um bebê seja registrado com um pai, o biológico, duas mães – sua família, de fato – e os seis avós correspondentes.
O casal de mulheres queria ter um filho, um amigo ajudou – e estabeleceu-se uma relação de afeto que a justiça reconheceu. O juiz Flávio André Paz de Brum argumentou que a ausência de lei para regulamentar novos e a cada dia mais numerosos e distintos fatos sociais não indica, necessariamente, a impossibilidade jurídica do pedido feito pela família. E aceitou a demanda com base nos laços de amor e em defesa dos interesses do bebê, que ainda não nasceu.
Desde muito criança ouço minha mãe dizer que bem-casado é quem é feliz. Referiase, claro, naquela época, aos casais que não formalizaram a união e que socialmente eram ainda malvistos – no interior gaúcho, muitas vezes usava-se pejorativamente a expressão “casal ajuntado”. Mas a premissa de minha mãe segue verdadeira, entendo eu, tenha a família o formato que tiver.
Ouvi comentários sobre os precedentes que uma decisão assim pode abrir: casamentos múltiplos, filhos usando quatro ou cinco sobrenomes, problemas de identidade das crianças e coisas do gênero. Prefiro não me preocupar com o porvir – e me ocupar do hoje com a dedicação, a seriedade e a inspiração em que se construiu a decisão do lúcido e humano juiz.
Certamente a sociedade ainda vai seguir se transformando, evoluindo, se aperfeiçoando.
20jul
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
À porta do escritório simples, mas recheado de livros e lembranças, a menina espia o bisavô estático diante da velha máquina Remington. Pensa que está passando do horário de seu programa favorito na televisão e o escritor não se mexe. Lamenta, mas continua ali, aguardando, perscrutando uma alma que ela tanto admira, que acha parecida com a sua, mas que considera tão distante, temporalmente.
Tudo naquele recinto parece cheirar a mofo – no mínimo a uma rançosa mistura de odores de fumaça de um cachimbo milenar, de suores e calafrios. Nas paredes que já perderam a cor, a eterna flâmula do time do América, reproduções antigas de quadros de gosto duvidoso de duvidosos artistas são o pano de fundo de uma história que se recusa a ser impressa nas amareladas laudas de papel.
Cansada, a menina se agacha até sentar sobre os calcanhares. Mas não desiste de observar o homem que, agora, já se movimenta lentamente na direção do texto. Ao vê-lo começar o telec-telec da máquina, a pequena se aproxima. Puxa um banquinho que o bisavô usava para brincar de tocar violão, décadas atrás, e se posta sobre os ombros de seu ídolo, espionando aquela essência a sangrar.
O título, A História que não Quis, já estava ali, há um tempo incontável. Mas, finalmente, tudo iria ser esclarecido. Aos 14 anos, a magrelinha de negros cabelos queria mesmo saber, afinal, que misteriosa dor se acumulava sobre aqueles já encolhidos ombros. E então ela lê a primeira frase: “Sim. Sou um filho da puta – que tal? Minha mãe biológica trabalhava em uma boate, nos altos da rua 15, nos anos 30, 40. Cresci em meio a prostitutas e cafetões, até ser adotado por uma família de bem, quando já tinha quase 8 anos”.
A menina vê, então, os velhos dedos recuperarem a antiga agilidade e tecerem, feito loucos, uma imensa teia de tramas sobre a vilania dos homens que se aproveitavam daqueles corpos de mulheres, casamentos abalados por traições e filhos bastardos – e mantidos apenas pelo laço social. A tarde termina, as histórias se acumulam, lauda a lauda, até que, noite alta, a menina já dormida sobre o tapete, o homem desperta daquela dolorosa viagem ao passado.
Ao ver o bisavô se preparando para dormir, a menina levanta, espia novamente o texto – que, a essa altura, já passava de 20 páginas – e pergunta, inocente: “Mas, biso… Como era o nome da sua mãe? Você não fala no nome dela aqui.” O velhinho, que acabara de comemorar seus 85 anos, mira naqueles pequenos e negros olhos e determina: “Isso não importa. Putas não têm nome”. E foi para seu quarto, dormir suas culpas.