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Arquivo da Categoria  Coisas da vida

14jul

De profanos timbres

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Entre textos sobre ética e bioética, ouço música. Ouço sempre: quando escrevo, quando leio, quando estou só ou bem acompanhada. Ouço música tomando banho, ouço em cada cômodo da casa, em todo lugar – e mesmo quando não há um rádio, um pendrive, um CD, eu ouço a música que me habita, porque minha alma canta o tempo todo.

Consigo ouvir música na balbúrdia alegre de meus netos, nas brincadeiras de todos os momentos, na correria da redação, na abençoada conversa telefônica com minha mãe, nas tardes de mergulho total e absoluto pelas entranhas do texto, ouço música na cadeira do dentista e do salão de beleza, ouço também quando quero relaxar, quando quero beleza e quando preciso aliviar as dores das saudades tantas.

Quando estou triste, ouço música – mas se estou alegre, também. Fuço música, garimpo tesouros desconhecidos, reaprendo acordes e harmonias de minha infância. E, então, muitas vezes, reencontro a mim mesma em algum videoclipe antigo, em um vinil escondido naquela pilha mantida com carinho e cuidado na minha sala de estar.

E se associo a canção à poesia, transbordo de beleza. Mas, entenda bem, não sou atraída pelo sagrado – na acepção formal da estética musical. Ao contrário, sou inteira profana. E, no entanto, sacralizo tudo aquilo que me faz plena. Como o faz o mágico britânico David Gilmour com o arranjo magistral do trecho mais conhecido da ópera O Pescador de Pérolas, de George Bizet. Como pode algo criado em meados da década de 1860 ainda emocionar tanto? Mas composições desse quilate não me tranquilizam – me perturbam, me tiram o fôlego e o sono.

E é em ânimo similar que reencontro uma brasileira como poucas. Remexendo em arquivos antigos, dou com uma mensagem que enviei a uma amiga, milhões de anos atrás, falando sobre esta cantora chamada Áurea Martins. A artista carioca, que deve ter hoje seus 75 anos, é dona de uma das mais belas vozes que já ouvi, de timbre inigualável e facilmente comparável às divas do jazz como Alberta Hunter e Ella Fitzgerald. Ficou mais conhecida como a dona da noite carioca, já que praticamente toda sua vida artística se realizou em bares e boates. Tem 50 anos de carreira, alguns álbuns gravados, um DVD (2012) com participação de Chico Buarque e narração de Fernanda Montenegro e até um curta, do cineasta Zeca Ferreira. E aposto que você nunca ouviu falar nela.

06jul

Meninos e meninas

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Hoje, acordei oca. Procurei minhas certezas – e elas se perdiam em meio à confusão de um contexto amalucado, em que manobras políticas de quinta nos fazem retroceder. Não podemos sequer enxergar mais os poucos avanços , as ainda incipientes conquistas de nossas liberdades. Elas se perdem pelas manchetes do real: Quem seria ainda livre, em um país de tantas gaiolas sociais? Elas se esmaecem em nuvens de insanidades e incoerências.

Muito pior do que ser terceiro mundo sob os aspectos econômico e sociais, é voltar a ser quase analfabetos éticos – e aqui, nem se trata dos tantos casos de corrupção que ocupam a grande maioria dos espaços midiáticos, esses já devidamente esgotados, em termos de conceitos e julgamentos. Falo da ética da vida, de pastores vendilhões do templo. De ignorância e preconceito. Falo de uma assustadora falta de humanidade.

Mas falo, principalmente, do que a mim parece um certo arrefecimento intelectual generalizado. Alguém me diz que as pessoas estão desaprendendo o pensar. Ou se esquecendo desta importante função biopsiquicossocial. Todos têm opiniões, mas duvido que a maioria dessa gente que vomita ódios, preconceito, conceitos vãos, gaste um neurônio a mais para refletir sobre alguns temas que, para mim integram a lógica natural da vida, a lei do livre arbítrio e da proteção aos vulneráveis – tão necessários ao chamado equilíbrio social.

Não quero de volta um tempo de inquisição – que apenas de arte se alimentam minhas imersões ao passado. Não quero um tempo de guerra surda e louca em que se executam sumariamente perspectivas, sonhos e esperanças. Não há como condenar à prisão quem jamais pode ser livre, quem sequer pode ser petiz.

Acho que o brilhante juiz João Marcos Buch tem especial razão quando diz que basta cumprir à risca o Estatuto da Criança e do Adolescente para retirá-los do flagelo do crime. Tão simples e tão complicado…

É claro que é sempre mais fácil projetar no outro as culpas de tudo o que nos prejudica ou aborrece. Mas tenho a mais absoluta certeza de que se há criminosos nesta história, somos nós. Se há necessidade de encarceramento é o de quem sequestra desses meninos e meninas o direito à dignidade. Exibimos para eles, todos os dias, celulares de última geração, tênis e roupas de grife, carros pra lá de envenenados. Em vez de uma mãe contando histórias, desde muito cedo eles adormecem sonhando com marcas e grifes. E nós os acordamos, agora, com algemas e presídios.

30jun

De minhas contradições

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Devo ser a única pessoa no universo que não gosta de festa junina. E não gosto mesmo, nem um pouquinho. Nesta época do ano, por missão de mãe e de avó, sou obrigada a participar de algumas. Vou pelo amor que me move a vida todos os dias, mas não pelo prazer do evento em si.

Não gosto das músicas – normalmente sertanejas, quase nunca o chamado forró pé de serra, original da festa que, para mim, só é autêntica quando assume as cores do norte/nordeste brasileiro. Forró tem que ter acordeão, zabumba e triângulo – e passear, majestoso, pelos ritmos mais tradicionais daquela região, como o xote e o baião.

Pedido o devido perdão a quem pensa diferente e gosta desses encontros estranhos, regados a vinho quente com cachaça e milhares de combinações de milho e seus derivados, não acho graça nenhuma em separar os cabelos e prendê-los em ridículas marias-chiquinhas, muito menos em exagerar na maquiagem e, ainda, inventar negras sardas sobre o rouge mais que evidente. Há até quem pinte um dos dentes da frente, para aparecer a “janelinha” que muito mais do que deixar engraçadinha a personagem, denuncia a falta das mais elementares condições de saúde a que estão relegados nossos verdadeiros caipiras.

Em suma, o que deveria homenagear, ridiculariza. O que deveria reverenciar, mostra um caipira brasileiro caricato, ri de seus valores e de suas verdades. Não sei muito bem como são as festas juninas na zona rural do Sul brasileiro – penso que sejam um pouco mais autênticas, mais raízes e menos pretensa urbanidade.

E, sim, há pessoas de meu convívio que não encontram razão em meus argumentos – dizem que não há mal algum em vestir uma camisa xadrez, se empanturrar de pinhão (eca!), que é a marca mais importante dos folguedos sulistas e me acusam de radical, já que, quando preciso ir a uma festa dessas, vou sempre de má-vontade.

Mas eu coloco nesta mesma panela a polêmica surgida em Joinville envolvendo o que se convencionou chamar de “blackface”. Primeiro, detesto a expressão em inglês, que deixa ainda mais pejorativa a cara preta. Segundo, que associo a personagem trazida para o Sul à figura dos bonecos nordestinos, os famosos mamulengos. Para o bem ou para o mal, os bonecos são de todas as cores, pura sátira, com belíssimos exemplares de negros e negras, que deram origem e inspiração a diversos outros artistas daquela região. São expressão, quase uma autocrítica, de uma cultura muito rica. Ou são aquilo que todos deveríamos ser e ver, de vez em quando – o avesso de nós.

22jun

Sobre paisagens e caos

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Não sei, sinceramente, quem cunhou a expressão “minha vida é um livro aberto” – a que meu pai sempre acrescentava, às gargalhadas, o complemento: “com algumas páginas coladas”. E, no entanto, nem o autor, nem meu pai, poderiam adivinhar o quanto essa frase faria sentido hoje, o quanto retrataria este nosso mundo de exposições e desvelos tantos.

Mais do que um livro aberto, a vida das pessoas desfila pelas ciber passarelas em textos e imagens absolutamente reveladoras. Há uma estranha necessidade, parece, de se desnudar. Se não literalmente, embora isso aconteça com frequência preocupante, metaforicamente. Há, no ar, debatendo-se entre bytes e linearidades, inegável e irrefutável energia exibicionista. A natureza, sempre sábia, claro que não permite que todas as contendas se passem na esfera da estética. No entanto, ficaria contente se apenas isso preenchesse minha telinha, noite e dia.

Mas, não. Nesta aldeia global que Mc Luhan sequer sonhou, há seres das mais variadas, algumas medonhas, espécies. E, quando somos, a um só tempo, receptores e emissores de mensagens, o caos da instantaneidade provoca print screens absolutamente surreais. Como quando se mesclam posts de adolescentes com os de pastores religiosos.

Talvez não haja paisagem mais instigante que aquelas desenhadas por gente plena de fastio de viver, que se dedica a reproduzir receitas dos chefs da moda, dietas para emagrecer ou poesia do J.G. de Araújo Jorge – com todo respeito, claro. Tudo devidamente enfeitado por imagens de perfumes e bolsas de grife comprados em viagens aos EUA.

E talvez não haja paisagem mais perigosa que aquela cunhada pelos exibicionistas dos outros – que reproduzem as mais estapafúrdias notícias, sem conferir a fonte, sem a preocupação com a veracidade. Verdade, no ciberespaço, é um hercúleo e cotidiano esforço, para quem já passou um pouco da idade dos contos da carochinha.

Paradoxalmente, neste tempo em que o pensamento linear deveria dar espaço à magia do hipertextual, passam, sob meus olhos, ideias, conceitos e preconceitos que, sinceramente, imaginara extintos. Retrocedemos?

Tenho esperança de que esta mistura tão drástica – porque livre – possa nos levar a algo semelhante à teoria do caos. E, então, a seleção natural vai nos reorganizar a passarela em que poderemos não apenas desfilar, mas compartilhar conhecimento, afetos e feitos relevantes para a nossa própria construção – e a de nossos semelhantes. Penso que nesse não-lugar em que trafegam as redes, imaterial e abstrato, se possa erguer uma nova, muito mais justa e humana realidade. Oxalá.

15jun

De idades sem razão

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

A velhinha, mais de 80, insiste em não ir, naquela semana, à manicure. Quer ela própria fazer as suas unhas. Pede à neta a caixinha de esmaltes e começa a se divertir, entre cores e odores, na tarefa que ela mesma se impôs, em sereno desafio.

A netinha, toda solícita, a ajuda a fazer as coisas na ordem certa. Primeiro, remover o esmalte antigo e, depois, o hidratante, para amaciar as mãos e tal. Mas a nossa personagem reclama autonomia e se recusa que a menina interfira, principalmente em comentários sobre os tons mais adequados para sua pele. “Quero o vermelho e pronto”, decreta, dando por encerrado o momento-pequeno-conflito.

E é, então, que ela toma o vidro de esmalte das mãos da corajosa neta, a única que se atreve a contrariá-la, vez em quando. Dá a tradicional sacudida, rolando entre os dedos e abre o vidrinho, para conferir a cor. Mão direita no pincel, começa a distribuir o verniz nas unhas da outra mão.

A menina assiste sorridente àquela cena que resulta quase em uma obra de arte pós-moderna. “Vozinha, deixa comigo, eu te ajudo a pintar”. A senhorinha nem ouve, entretida no sincero afã de deixar maravilhosas as suas sempre bem cuidadas unhas. A menina se aproxima, pega na mão da avó, e tenta direcionar melhor o pincel à unha que ficará magicamente vermelha. Mas nossa personagem a repele, já com um pouco menos de gentileza e de paciência. “Pode deixar, garota chata, sou perfeitamente capaz de fazer isso”.

Nenhuma dedicada neta teria a sensibilidade que aquela menina de seus quase 16 anos demonstrava, no cuidado com a mãe de sua mamãe. Não teve qualquer problema em se afastar e ficar observando de longe a avó se retorcendo em obstinado esforço para cobrir completamente a unha – e deixar em tons naturais os dedos.

Em poucos minutos, a velhinha dá por encerrado o trabalho e então olha para a neta, quase arrependida de seu comportamento. “Não ficou lindo? E podes tirar o excesso, pra mim?”. A menina respira fundo, senta-se ao lado da avó, toma às mãos os instrumentos necessários e começa a limpar o esmalte que estava esparramado não apenas pelas unhas, mas pelos dedos, mãos, punhos. Sobrou até para a delicada saia branca que a vovó usava. E, ao final do trabalho, unhas bonitas e coloridas, a velhinha ainda se gaba: “Não te falei que nenhum tal de Parkinson iria me impedir de fazer o que eu quisesse?”. E, só então, sorriu.