Arquivo da Categoria Coisas da vida
08jun
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
A existência é um tempo e um espaço que nos são oferecidos e dela podemos fazer o que quisermos. A frase, pinçada de uma tradução de um texto do espanhol que fiz, recentemente, para um amigo, diz, em suas mágicas entrelinhas, que somos total, completa e irremediavelmente responsáveis por todos os nossos atos – sejam eles ações concretas ou pensamentos, projetos e ideais.
E então espocam em todas as mídias os comentários sobre o lindo, bem-feito, de excelente gosto e irretocável estética, comercial de um brasileiríssimo fabricante de perfumes e cosméticos para o Dia dos Namorados. Nem gosto de tocar em temas polêmicos, meu tempo de arauto da justiça já passou. Mas trago aqui esta questão, porque me parece bem emblemática e ilustra tristemente o tempo sombrio que enxergo do lado de fora de minha janela.
Como sociedade, em geral, já fomos mais democráticos, já fomos mais justos e, sobretudo, já fomos muito mais generosos. E então leio comentários inacreditáveis de pessoas que sempre reputei como inteligentes e lúcidas com propostas as mais esquizofrênicas sobre o tema da homossexualidade. Não participo de nenhuma ONG, de nenhum partido político, de nenhuma organização em defesa ou contra qualquer coisa. Não tenho, portanto, procuração de ninguém para defender ou atacar.
Mas defendo, serena e tranquilamente, o direito às escolhas pessoais, às opções de vida de cada cidadão deste planetinha ainda tão desequilibrado. Sobretudo, o direito pleno ao amor, em todas as suas formas e projeções. Para o amor nascemos. Pelo amor respiramos e experimentamos os aromas e sabores do existir. Como também pelo amor somos aliviados e confortados das dores e mágoas que vão, por vezes, tentando descolorir nosso caminho.
E se somos completamente responsáveis por tudo que fizermos da dádiva da existência, como dizia o texto que li, em algum vão de nós deverão aflorar as sementes que cultivamos. E elas poderão nos levar ao paraíso, pleno de amor, beleza e arco-íris. Ou às trevas das malas e faias.
01jun
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Outro dia, decidi ficar em casa, em vez de ir trabalhar, e me dedicar um pouco à organização doméstica, já que minha preciosa ajudante teve problemas sérios e se afastou por uns dias. Não, não gosto da rotina de cuidar de uma casa – prefiro usufruir dela, sempre que posso. Mas também estou preparada para essas pequenas emergências, que não me provocam estresse ou depressão porque fazem parte dessa magia que ninguém entende, que é o viver.
Pois, então, estava em casa bem faceira, dividida entre a lida doméstica e a profissional quando, de repente, ouço um barulho de helicóptero. Nem liguei, acostumada aos sobrevoos do Águia, da PM. Só que desta vez, o bicho começou a voar bem baixinho e logo estava exatamente sobre minha casa, provocando uma ventania que me fez lembrar o Vento Norte de minha Santa Maria. Costumava-se dizer que gente magra não se criava no coração do Rio Grande – o Vento Norte levava…
Só que o furor do Águia era bem maior. Sentia tremerem portas e janelas – algumas se abriram sozinhas. As árvores era desfolhadas e se ajoelhavam sob a força do deslocamento de ar. Surpreendentemente, nossos dois lindos labradores, Homer e Bart, permaneceram absolutamente calmos, ao contrário dos pequenos Tom Jobim e James Bond, que, na cozinha, gritavam alucinados.
Eu, imaginando a cena digna de filme policial americano, corri para fechar toda a casa e fiquei espiando pela persiana. No sobrado em frente, a vizinha chega à sacada, fotografa o helicóptero e logo se encerra também. Apoiada no encosto do imenso sofá, sigo tentando ouvir e entender o que se passava. Meu coração, claro, queria sair pela boca, tamanho o susto. Via as lixeiras voando na garagem, alguma sujeira e até retalhos de gesso fluindo do teto, o chão rugindo sob meus pés, pirei…Seria o apocalipse?
Mas logo retomei a lucidez e decidi ligar para a polícia, para saber o que estava acontecendo. A moça que me atendeu, muito gentil, informou sobre um assalto que ocorrera em uma rua próxima. Minha imaginação, a cada minuto mais fértil, já ouvia as vozes dos fugitivos saltando sobre o muro de minha casa… Certamente estariam sob efeito de droga e violentos. Sem dúvida alguma, tentariam me fazer refém…
Passado o pânico, não cheguei a saber se os policiais conseguiram capturar os invasores da loja de móveis que havia perto de casa. Mas fiquei aqui pensando no quanto somos vulneráveis e frágeis, sob a égide do existir, hoje em dia. E o quanto já nos sentimos seguros, tempos outros, ao passear na rua, no parque e mesmo no centro. Bandeira branca, por favor!
25mai
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Uma das canções mais conhecidas de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, Sol de Primavera, traz uma curiosa constatação: “a lição, sabemos de cor. Só nos resta aprender”. Resgato a linda canção consagrada por um dos garotos do eterno Clube da Esquina, quando lembro do que fazemos com nosso mundo – e com a vida que ele abriga.
Não vou nem comentar sobre a nossa própria – as correrias, os abusos, o nonsense de uma rotina maluca que, muitas vezes, nos sequestra o viço. Falo de uma postura de eleger a vida em todas as suas formas. Falo de gentileza no trato com o outro, de afabilidade, de reconhecer as centenas de milhares de vidas à nossa volta como nossos iguais, integrantes de um nem sempre harmonioso universo. Mas falo, sobretudo, das várias outras facetas do estar em comunidade, do compartilhar a existência.
Gosto de uma frase atribuída a John Lennon que diz que a vida é aquilo que acontece enquanto você está planejando o futuro. Porque é uma grande verdade. Olhando para o futuro, não enxergamos toda a beleza e todo encanto à nossa volta. Não há tempo para apreciar a lua maravilhosamente cheia, que deixa um prateando sobre o mar.
Não há ânimo para uma caminhada em meio à natureza, não há espírito de paz para compartilhar uma tarde de domingo com pessoas que precisam dela – por estarem doentes do corpo ou do espírito, por terem perdido a esperança, por não terem comida ou agasalhos para os vários filhos, soltos à míngua e à margem. E, que loucura: é impagável o sorriso de uma criança que ganha, assim, do nada, um brinquedinho novo, um casaquinho ou um bombom.
Independentemente de bater panelas ou louvar a moça que nos dirige a vida, encurtar um pouco mais a distância que nos separa de nossos iguais, tenham eles a cor, a raça, o time de futebol ou a ideologia que quiserem ter, é uma ação que nos levará ao caminho de alguma felicidade, de muita realização e milhões de alegrias.
Empilhando dias, deixamos de ver a essência das coisas – e, claro, muito especialmente das pessoas. É excelente passar o final de semana na companhia insuperável de um bom livro, um bom filme, música de qualidade. Mas é também sensacional sair um pouquinho de nós na direção do outro. E compartilhar um bom livro, um bom filme, um espetáculo musical. É no conjunto que nos equilibramos, nos apoiamos – e crescemos. É no conjunto que seremos mais felizes. E então… “quero ver crescer nossa voz no que falta sonhar…”.
18mai
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Ela se chamava Valentina – e não poderia ter outro nome. Tinha 14 anos, era chilena e convivia, desde os seis meses de idade, com uma doença de origem genética chamada fibrose cística, que causava dores lancinantes.
Tanto que, em fevereiro deste ano, gravou e publicou um vídeo endereçado à presidente Michelle Bachelet, em que pedia que a presidente autorizasse sua eutanásia. Queria receber uma injeção letal para abreviar sua vida e seu sofrimento. Comovida com o apelo, Bachelet visitou a menina no hospital, mas não autorizou a medida extrema, que é proibida pela legislação chilena.
Na quinta-feira passada, a menina faleceu, de insuficiência respiratória. Seu pai havia passado o dia anterior conversando com ela, em encontro que se prolongou até a madrugada de sua morte. À imprensa, ele disse que a filha foi embora tranquilamente. No vídeo, assistido por milhares de pessoas na internet, Valentina dizia que estava cansada de tantas dores e que a presidente poderia autorizar a atitude que a libertaria – e a faria dormir para sempre.
No final do ano passado, uma moça americana de 29 anos, que tinha câncer terminal, decidiu cometer o que a bioética define como suicídio assistido, após seus médicos dizerem que ela tinha não mais do que seis meses de vida e que a fase final seria muito dolorosa. Brittany Maynard optou pelo que definiu como morte digna.
Evidentemente que não cabem neste espaço embates profundos sobre temas tão polêmicos. Mas vale o registro da coragem dessas pessoas em enfrentar, de peito aberto, algo que sempre foi o maior mistério e a única certeza de quem nasce, que é a finitude.
À primeira vista, a vida da adolescente chilena parecia apenas um caminho de dor. No entanto, conheceu o amor de seus pais e todos os familiares, o carinho de muita gente que soube de seu caso e tentou ajudar, mobilizou plêiades de pessoas iluminadas, médicos dedicados e outros profissionais da saúde que a acompanharam até o fim. Um curto, mas intenso e rico espaço do mais puro amor.
Em algum misterioso flanco do viver, há, sim, uma grande e eterna paixão. Mas neste espaço tão desconhecido e mágico, há que caber, também, um outro elemento tão importante quanto o direito à vida, que é o direito à autonomia. E, então, alguém comenta comigo que é difícil avaliar se um adolescente de 14 anos tem plenas condições e maturidade para exercer esse direito. Não sei. Mas convivendo, por anos a fio e sem trégua, com tamanhas dores e sofrimento, talvez essa maturidade seja extraída a fórceps do ser. Paz, Valentina.
04mai
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Eu iria falar de Gal Costa e de como foi emocionante revê-la, muitos anos depois, em Curitiba, dias atrás. Gal continua a mesma, a voz vibrante e cristalina, ácido e verdejante timbre nas naturezas de nós. Gal cantou Lupicínio como poucos – em um espetáculo cuidadosamente pensado e realizado para dar um tom moderno ao velho Lupi, sem alterar a dramaticidade de sua essência. Chorei ao vê-la se desesperar lindamente cantando “Vingança”, um tempo meio torpor, meio êxtase, muito verdadeiro em Lupi.
Eu iria falar de Gal, de Lupi, do bar em Porto Alegre, do lindo hino do meu imortal tricolor, que ele compôs… Iria elogiar, outra vez, aquela mágica voz, que sempre me encantou e que segue impecável nesta mulher de quase 70 anos. Iria comentar até da banda, que achei maravilhosa, da fantástica iluminação e de como o conjunto desses elementos nos reportam ao ambiente meio tango, quase underground, do querido compositor gaúcho – sem caricaturá-lo, sem modernizá-lo em demasia, mas ajaezando cada nova e rearranjada nota de canção.
Iria comentar do quanto percebi de rock e modernos suingues no clima do lindo espetáculo a que assisti no teatro Positivo. Iria comentar, até, das saudades que tive de um tempo que não vivi – mas que continua muito presente quando lembro de meu pai cantarolando “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher…”
E, no entanto, só consigo pensar no massacre imposto pelo governo do Paraná a seus professores – mobilizados em frente à Assembleia Legislativa para lutar por seus direitos. E então o País – e o mundo, já que o fato ocupou também os noticiários internacionais – assistiu estupefato a um circo de horrores, com todos os componentes de praxe, do sangue e feridos espalhados pelas ruas às explicações que nada explicaram, de parte do governo. Teve até alguns componentes surreais, como a falsa foto de um policial ferido e um cinegrafista mordido pelos cães da PM.
Sou filha de professora, neta de professora, mãe de professora, irmã de professora e de professor, prima de muitos laboriosos e dedicados mestres, amiga de outros tantos, que nem consigo contar… Vivenciando a luta diária desses profissionais que enfrentam toda sorte de dificuldades para compartilhar conhecimento – e também aprender com essa experiência de vida – não há como compreender as cenas grotescas a que assisti. Uma tristeza e revolta enorme me desmancharam em salgadas lágrimas. “Dona Divergência, com seu archote, espalha os raios da morte”, diria Lupicínio.