Arquivo da Categoria Coisas da vida
27abr
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Há alguns bons anos, ganhei de uma amiga portuguesa muito querida, um Livro em Branco. Não conhecia. “Coisa de português”, brinquei com ela… Mas tratava-se, apenas, de um livro, com capa e orelha e cerca de 60 páginas em branco.
Por algum tempo, não sabia o que fazer com o tal livro – redigia direto no computador, escrever de próprio punho me parecia um tempo desperdiçado, já que eu, invariavelmente, teria que digitar tudo, depois.
Outro dia, reencontrei o meu Livro em Branco – que não está mais vazio, já que comprei uma caneta de ponta fina, respirei fundo, me armei de toda minha paciência e dedicação e fui preenchendo aqueles espaços enormes. Poemas e mais poemas, em minha letra atrapalhada de quem já quase desconhece os caminhos do manuscrito.
Fiquei surpresa com a quantidade de besteiras, mas também com algumas coisas boas que li. Na urgência de agradar minha amiga – queria mandar o livro para ela – fui escrevendo, me destroçando e reinventando… Páginas e páginas de mim. Ou do que quisera ser. Ou do que fui.
Não mandei o livro para além-mar. Eu o devo, até hoje, a minha amiga. Mas penso que me rever naquela poesia algo insana, algo etílica, muito visceral, me traz boas recordações e, sobretudo, muitas lições.
Foi um tempo de grandes tempestades existenciais. Muitas, mesmo. Um tempo em que me recusei a me enxergar, em que queria sair de mim, em que me negava o próprio reconhecer – e, portanto, o tempo em que o papel ganhava tudo o que eu era e não queria…
O Livro em Branco foi, para mim, a marca de um tempo negro – muito necessário, muito inspirador, muito reformador, que se traduziu em novos tempos de luz.
Cada verso que releio, passados 15 anos ou mais, me remete a situações, ações, pessoas e vivências importantíssimas, que me ensinam muito sobre a natureza, a volatilidade e a inconsistência humana. A começar pela minha própria.
E, então, eu entendo que evoluir não é necessariamente poder comprar um carro do ano ou ser capaz de escrever um best seller. Muito mais do que isso, é, quem sabe, conseguir descobrir nossos próprios pontos cegos – e, a partir deles, perceber melhor o que nos ameaça, nos deprime e nos empobrece. É antecipar em alguns segundos nossas escuridões e ter forças para redobrar nosso brilho. É garantir, por recursos íntimos, a nossa própria integridade. Quem dera todas as pessoas pudessem ter o seu Livro em Branco e, a partir dele, colorir mais a vida.
13abr
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Quando parecia que a vida não lhe trazia mais decentes assuntos, os dias se sucediam modorrentos, as tardes intermináveis, noites sem sono algum, a moça se enchia de questionamentos, se contaminava de tendências e teses religiosas e transcendentais as mais diversas e autoinjetava esperança em doses cavalares, tentando forçar a barra da vida para que fosse, ao menos, um pouco mais atrativa.
E então inventava passeios ao centro do universo, grupos de estudo das estrelas cadentes e das tendências da moda na Transilvânia… Ou se teletransportava ao Tibete para consultar seu monge favorito, participava de sessões de exorcismos os mais radicais – afinal, ela tinha certeza de que o mundo estava sendo invadido por demônios de várias dimensões…
Um dia, recebeu a visita do espírito de Ramsés 2º, o faraó mais famoso do antigo Egito. Mas ela lembrava bem que não gostava dele – um ser que teve um monte de esposas, incluindo filhas e irmãs… E o interrogou sobre isso, muito curiosa para saber como ele poderia amar sexualmente mulheres que eram de seu próprio sangue.
Não ouviu – ou não entendeu – a resposta que o poderoso lhe dirigiu, segundos antes de sumir em uma nuvem de perfumada e colorida fumaça. Era bem bonito, o cara. Certamente, não foi à toa que atraiu tantas beldades. Mas não a interessava nem um pouco uma criatura que, além de machista empedernido, ainda habitava outra dimensão. Seriam, literalmente, de sonho suas noites de amor…
Despertou daquele torpor ainda a tempo de ouvir sua mãe avisar que havia alguém à porta. Atendeu ao carteiro, que lhe entregou um pacote pequeno – finalmente chegara a encomenda tão esperada: uma luneta mágica, para que pudesse ver o interior das pessoas. Ao menos era o que anunciava com muita seriedade o site em que comprara.
Abriu rapidamente a caixa e correu a buscar sua mãe. Apontou para ela a tal da luneta e não acreditou no que viu: era apenas a imagem que bem conhecia da mulher que a trouxe ao mundo. De extraordinário, pôde enxergar com mais detalhes as rugas e pequenas manchas da pele. Percebeu, pela primeira vez, que a mãe envelhecera. Sentiu um grave sufocar, uma necessidade enorme de sair de seu casulo. Tudo bem, seria uma borboleta furta-cor, já que passara, em muito, seu tempo de se libertar. Vestiu-se e foi à rua. Quem sabe encontrasse um bom emprego…
06abr
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Alguém me pede para falar de amor e de “chaves” para relacionamentos duradouros. Fico pensando que tipo de qualidade eventualmente me habilitaria a tal ousadia, e, percebo que, em vez de amor, talvez seja um dia bom para falar em solidariedade. Em amor entre irmãos, entre amigos, entre gente de uma mesma causa, a causa da gente… Nesses tempos bicudos, para usar a expressão cunhada pelo poeta Mário Quintana, é sempre restaurador desfiar os afetos.
E quando uma amiga querida, que encontro muito menos do que gostaria, me telefona para me dizer que “o coelhinho” deixou um chocolatinho pra mim – e que ela me mandaria, muito em breve –, imediatamente pensei em quantas pessoas amadas a gente tem por aí, que às vezes nem nos damos conta.
Temos compromissos, trabalho, muito trabalho, as encrencas de rotina da família, as ocupações eternas com as coisas tão bobas e por vezes tão complicadas do dia a dia – tenho certeza de que todo mundo já perdeu horas a fio tentando trocar o plano do telefone celular, cancelando uma assinatura ou mesmo solicitando serviços os mais diversos.
E nessa roda vida, vamos nos enredando em nós quase impossíveis de desfazer. Nossos amores seguem nos amando assim, meio de soslaio, à meia distância de nosso sorriso. E a gente meio se esquiva, meio comparece, atrapalhados que somos por nossa própria dinâmica louca do viver.
Pelas redes sociais, o revés de nossa integridade, as quase santas guerras travadas entre o ideal e o possível colocam em posições antagônicas pessoas as mais diversas, ideologias ou a ausência delas, filhos brigando com os pais, famílias inteiras se deteriorando em nome de conceitos tão distorcidos e vazios, tão sem-noção e sem razão, como “coxinhas” e “petralhas”.
A rasa base em que se edificam pomposos embates envolvendo a situação brasileira, a causa gay, e, mais recentemente, a proposta de redução da maioridade penal, me dá calafrios e pesadelos. Não damos conta de nosso entorno e temos respostas as mais rápidas, lógicas e fáceis para esses sérios dilemas.
E não é por outra razão que faço aqui a minha mea culpa e me comprometo a ser mais presente entre meus amigos tantos. Porque é no brilho do olhar, no abraço sincero e nas mãos estendidas que encontramos nossas mais preciosas respostas. É no amor que nos faremos pessoas melhores. E gente boa é que faz um país. Aliás, só para constar, um país íntegro não coloca crianças em cadeias – as envolve em afeto e públicas políticas de proteção.
30mar
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
As redes nem tão sociais aproximam quem está longe e afastam quem está perto… Uma ambiguidade existencial, nestes tempos em que vemos pela tevê, em tempo real, as investigações dos tantos escândalos, os acidentes e a banalização da vida e da ética do viver. Há quem diga que deixamos de ser impassíveis – e passamos, mesmo, à ação. Até fomos para as ruas, vejam só.
No entanto, enquanto conversávamos, pela virtualidade do não-ser, com amigos de lugares os mais distantes sobre a situação econômica e apontávamos nossas metralhadoras para tudo o que fosse institucional e político – como se fosse possível implodir o País e reconstruir tudo do zero –, não víamos passar em nossa rua aquela vizinha doente e só. A mulher que reside a poucas casas de nós, de quem soubemos, tempos atrás, da grave doença e dificuldades tantas, da falta da família, que vive no interior do Paraná… Aquela senhora de seus sessenta e tantos, que aparenta muito mais e atravessa a rua em cansados pés, em busca de um transporte que a permita chegar ao tão aguardado atendimento médico – aquela pessoa, tão triste, é invisível.
Estamos ocupados com os problemas conjunturais, ainda que sequer possamos entendê-los direito, empenhados em criticar a nova novela e as imoralidades que chegam pela telinha. Engraçado é que reclamamos e nos escandalizamos com as relações homoafetivas, mas não desligamos a bendita da tevê. Na nossa contumaz ignorância e suprema crueldade, viramos juízes e algozes. Sepultamos, com nossa tradicional acidez da verve e pequenez da alma, atrizes e atores sensacionais, que têm a audácia de nos apresentar a um espelho de que não gostamos nada, nada – porque reflete, em 3D, o avesso de nós.
Só que logo depois da indecente novela, voltamos a nossos papos virtuais – afinal, temos firmes convicções e opiniões embasadíssimas para solucionar todos os problemas que afligem a sociedade. E a noite segue quente, ainda que seja bem diferente o calor de algumas casas adiante, onde as luzes e as dores permanecem acesas.
E segue a via crucis da modernidade: via internet, pisamos o mundo, mas escamoteamos nosso próprio chão. E é quando, em uma dessas manhãs úmidas e caladas, a vizinha do lado vem avisar que a velhinha doente morreu. Ato contínuo, somos a cara da solidariedade. Cruzamos o portão ainda de pijamas e corremos até lá para prantear o corpo da abandonada. Ah, coitada… (e não, não duvidem daquelas lágrimas – são cristalina expressão de todo esse vazio).
23mar
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
Presas no elevador, aquelas pessoas, oito, ainda não tomaram consciência da situação. Faltara energia no prédio durante um forte temporal e então elas se viram em inquietante e repentina intimidade com ilustres desconhecidos. Três mulheres, cinco homens. Um casal de idosos, um adolescente e os demais na fértil vida de adulto, eles começaram a aventura na certeza de que tudo acabaria rápido e bem.
Logo no momento em que o elevador balançou, emitiu um som esquisito de engrenagens mal lubrificadas para, em um só golpe, parar em definitivo e em total escuridão, ouviram-se algumas vozes em tons diferenciados. Alguns “Opa”, outros “Que los parió”, alguém murmura um “Ai, Jesus” – muito provavelmente a velhinha que já entrara advertindo o marido de que estavam atrasados para os remédios da noite.
Entre resmungos e silêncios, quase todos procuram iluminar o recinto com seus aparelhos celulares. Menos a velhinha, que tira da bolsa uma poderosa lanterna e se dedica a procurar frestas para dirigir o facho de luz. “Quem sabe alguém percebe e nos localiza”, diz a esperançosa anciã. Ninguém tem sinal de celular ou de internet.
No andar térreo, alguns funcionários da empresa de segurança gastam seus neurônios procurando formas de ajudar. No manual de procedimentos, o conselho é chamar os bombeiros – ou aguardar que a energia retorne. Mas com aquele temporal todo, a cidade inteira caótica, é difícil obter algum apoio. “Assim que possível, mandaremos um grupo de socorro”, responde o Corpo de Bombeiros.
Lá em cima, parados entre o quarto e o quinto andares, as pessoas, agora, apenas se olham, constrangidas. Havia que esperar. A velhinha quer puxar papo, o marido a cutuca, a moça a seu lado mergulha em sua própria intimidade e lamenta o exagerado número de testemunhas justamente naquela oportunidade única de trocar as primeiras palavras com o jovem médico que trabalha no terceiro andar – e que a olhava de soslaio, ora entusiasmado, ora reticente.
É exatamente quando a luz retorna. Aliviados, os passageiros se posicionam para sair. Tentam uma confusa fila, em que o jovem médico, claro, fica imediatamente atrás da sonhadora moça. Mas quando chegam ao térreo, a surpresa: com a água pelos joelhos, os vigilantes sorriem. O homem engravatado, no entanto, não acha graça alguma e aperta de novo o botão, rumo ao último andar, onde há um restaurante. É hora daquela cervejinha amiga. É hora de conhecer, mesmo, os novos e silenciosos amigos. Que chova!