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Arquivo da Categoria  Coisas da vida

10mar

Joinville em mim

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Na recepção do jornal “A Notícia”, um tórrido fevereiro de um longínquo 1988 tentava, em vão, me seduzir. Caminhara poucos metros, depois de descer do ônibus que me trouxera de Caxias do Sul para conhecer aquela possibilidade de mudança. Sempre adorei câmbios – do meu próprio leiaute, dos móveis da casa, da rua, da cidade, queria era mesmo sentir novos sabores, descobrir cores mescladas, gente diferente, hábitos e vidas a experimentar. Por isso, por nossa alma meio cigana, meio andaluz, tínhamos planos de permanecer apenas uns tempinhos por aqui – mas logo seguir adiante, buscando ares distintos, desafios outros.

No entanto, fomos ficando, construindo, interagindo, nos adaptando aos trejeitos e delicadezas do jeito joinvilense de ser. Fomos aprendendo a assimilar a delícia dos cafés coloniais, procurando nos adaptar à rotina de então, no que se referia ao funcionamento dos bares e restaurantes, que fechavam cedo demais para nossa alma ainda boêmia… Sobretudo, buscando a compreensão de uma cultura tão bonita como diferente de nossas gauchescas raízes.

Devagarito, vinham chegando outros profissionais do pago e em poucos meses já tínhamos quórum para criar um CTG, caso fôssemos um pouco mais tradicionalistas. Mas os churrascos, sim, o chimarrão também, eram nosso passaporte para os encontros daquele começo de vida catarinense. O vinho da serra gaúcha, claro, era o combustível que nos amenizava a saudade e alegrava as noites.

Começavam a aparecer, então, em nossos cardápios, as riquezas do lugar – dos hollmops com cerveja que só eu tive coragem de provar, ao eisbein, marreco recheado, chucrute e a sensacional sobremesa austríaca, o apfelstrudel… Do pampa gaúcho à europeia paisagem deste meu lugar, iam surgindo várias de mim, por esses anos tantos. E hoje, posso dizer que sou daquela Joinville que ia ao circo instalado no terreno onde fica o Shopping Mueller., que frequentou os cinemas de rua e foi amiga do Germano Jacobs… Que acompanhou diferentes fases do JEC, viu o festival de Dança se tornar gigante e assistiu, toda prosa, à chegada da Escola do Ballet Bolshoi.

Mas talvez o que de mais sedutor encontrei nesta cidade que hoje é nossa e de nossos netos, tenha sido mesmo o próprio joinvilense. Com ele aprendi e aprendo muito, tenho diárias lições de vida. Aprendi, por exemplo, a importância de ser humilde sem ser servil, de ser alegre sem ser irresponsável e solidário sem ser assistencialista, ser cidadão sem ufanismos desenfreados. Por isso tudo, não escrevo um poema a Joinville – a minha cidade já é, por si só, a mais lírica expressão de mim. Feliz aniversário.

02mar

Capital e bem-querer

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Abro um texto de trabalho que começa com a expressão “capital simbólico”. E ainda sob o forte impacto de uma emocionante festa-surpresa para um amigo queridíssimo que não via há muitos anos, meu coração sabota todos os conceitos financeiro-econômicos que o termo possa sugerir e se fixa no que eu chamaria de capital simbólico humano. E este, claro, não é apenas simbólico: é pleno de significados e sentidos.

É muito linda esta sensação de resgatar, em 15 minutos, afetos de uma vida inteira. As redes sociais, neste aspecto, são bem ambíguas – de um lado, aproximam, em um click, imensas distâncias geográficas. Mas, não raramente, distanciam justamente quem está perto de nós. Hoje em dia, falamos até com nossos cônjuges pelos comunicadores online. Tudo muito prático, muito rápido, muito louco…

E, no entanto, nada supera a alegria de um abraço de um amigo de nosso coração – nada, online, é melhor que o papo olho-no-olho, o toque, o fraterno sorriso, o cheiro deste amor pleno que, sim, deveria contaminar a toda a gente.

É por isso que não entendo o querer mal. Ainda que existam, claro, pessoas que nos trataram mal, que tentaram nos prejudicar ou o fizeram com a gente que amamos, me parece que funciona, aí, a famosa lei da causa e consequência. O que vem do mal, a ele retorna, naturalmente. Mesmo que demore, mesmo que a gente fique sempre muito frustrada com o que podemos considerar grandes injustiças – vivemos num país visceralmente injusto, em um mundo amalucadamente desequilibrado – penso como alguém que ouvi, dia desses: é uma questão passageira aquilo que chamamos de injustiça; são tempos cíclicos e logo a natureza se encarrega de reorganizar tudo outra vez.

Mas é uma grande verdade que, em algumas situações, um palavrão, um chute no balde e uma grande dose de adrenalina são inevitáveis. E são justamente esses os momentos que dão ainda maior sentido, beleza e alegria ao capital humano que conquistamos, vida afora, coração adentro. Um capital de que, certamente, os Eikes e sheiks árabes da vida dificilmente tomaram conhecimento. Um capital que preenche as lacunas apenas de quem cultiva e mantém abertas as veias e desperta a alma.

23fev

Alegorias

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Na tela em branco, o cursor pulsa seus vazios. A moça não quer entender a situação – quer achar as respostas agora, quer a vida vertendo outra vez em suas entranhas. Não sei a cor de sua pele, nem seu peso ou altura. Não vejo seu rosto, mas adivinho uma alma em mosaicos. A moça, Geni, não é a que dá-se, assim, desde menina, a do Zeppellin prateado de Chico Buarque. É apenas uma pequena Geni, sem sobrenome.

A moça quase menina escreve, então, a palavra “eu”, mas logo retrocede o cursor, que volta a enfeitar suas ausências. Quer contar sua história, mas percebe que há pelo menos dois grandes obstáculos: primeiro, que ninguém está interessado naquela trajetória sem pé nem cabeça, sem começo nem fim. Sem meio – e o que importa mesmo é o meio; segundo, que as poucas aulas a que assistiu, antes de deixar a escola pela cola, não a ajudam em nada a articular as frases. Os tempos de tantas ruas não a reinserem gramatical e, menos ainda, emocionalmente.

A menina Geni se perdeu – da família, dos amigos, de si mesma. Uma assistente social disse, certa vez, que ela já nascera perdida. E então o cursor, tão teimoso, ameaça outra vez um gerundinho básico: pensando em me matar…

Mas também o gerúndio voltou ao éter e a menina chorou. No coração bloqueado, um bolo enorme de emoções e de palavras querendo sair correndo, inaugurar a tela, reiniciar a vida. Sentia que poderia explodir, não recebesse aquele vazio, ao menos pequena parte de suas vísceras.

E ela estava em uma situação realmente desesperadora. Ganhara do amor de sua vida aquele tablet misterioso. Já desvendara algumas funções, já conseguira conectar-se à rede sem fio do restaurante do outro lado da rua. Faltava justamente… a sua história.

Para isso, recebera o maravilhoso presente. Para contar que nascera mais ou menos em 1997, que a mãe morrera quando ainda era bebê, que o pai seguia sendo um espaço vazio em sua certidão de nascimento, que a tia a criara a pão caseiro e pancadas, que os irmãos foram doados a diferentes famílias e ela não sabia mais nada sobre isso. Que fugia, desde sempre.

Como transbordar essa vida naquela telinha pequena? Geni, que não era personagem de música famosa, de ópera alguma, que era apenas menina largada, coberta de chagas e que dessa trama conhecia apenas o malandro, se engasgou com o fel que a maculava a garganta. Sai, então, o verbo no imperfeito pretérito: queria viver outra vida, que não a minha…

Mas é nesse momento que o cursor recua, apressado, o tablet é desligado. Olhos escuros brilham na virgem retina. Chama a si o amor de sua vida, que a viagem precisa recomeçar. A vida pode esperar. Joga pedra na Geny.

16fev

De outros carnavais?

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Esses tempos de Carnaval me fazem lembrar muito de meu pai. Durante toda minha infância e adolescência, ele utilizava a folga de sua condição de funcionário púbico para ganhar um extra, tocando nos bailes, pela cidade.

Exímio percussionista, sempre foi muito requisitado pelas bandas daquele tempo. O repertório, no entanto, era muito diferente dos dias de hoje. Nada de boquinha da garrafa, nem qualquer tipo de funk erótico-pornográfico, nem sambanejo ou pagodinho da área de serviço – que o do fundo do quintal, esse, sim, sintetiza o suave e contagiante samba de raiz.

Aliás, naquele tempo a palavra pagode não era atribuída a essa espécie de subtipo de samba. Designava apenas a reunião de pessoas para ouvir, tocar, compor e dançar esse ritmo tão brasileiro, originário do batuque africano.

E meu pai, que sintetizava, internamente, todos os ritmos, ia do sambão à marchinha e até os sucessos dos Beatles, de Roberto Carlos e da chamada Jovem Guarda tocados de maneira acelerada para as pessoas se acabarem no salão, se divertia observando os foliões. Chegava em casa, ia dormir, mas à tarde nos deliciava com as histórias da madrugada.

Não foram uma nem duas vezes em que narrou situações semelhantes e surreais, envolvendo um homem mais velho e uma jovem – aquela velha história da mão na coisa e da coisa na mão. Ora, o tarado era denunciado pelos gritos da moça bolinada, ora recebia sonoro tapa dela ou do marido, mas, ao final, era sempre a mesma cena, do velho borracho sendo arrastado pelos seguranças e expulso do baile.

Já aposentado dos Correios e da folia, meu pai gostava de comparar os comportamentos nos bailes de seu tempo de músico. Muito embora a juventude repetisse, já naquele tempo, o bordão “no Carnaval, ninguém é de ninguém” os bailes que meu pai ajudou a abrilhantar eram frequentados pela família inteira – quase sempre os pais levavam as filhas para protegê-las dos garanhões de plantão, como se possível fosse domar os hormônios da adolescência.

E ele ria muito. Pai de cinco meninas que evitou levar precocemente para a orgia, meu Francisco se solidarizava aos outros pais nervosos que, ao fim do fervo, procuravam meio apavorados as garotas sumidas em alheios braços. “Hoje em dia, eles nem se preocupam com privacidade e copulam na frente dos outros…”, espantava-se meu velho músico, que assoviava como ninguém todas as marchinhas de um tempo em que a significativa graninha do Carnaval o fazia sonhar com uma vida linda para suas cinco princesas e seu gurizão.

09fev

Sangras e acalantos

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Sobre telas em branco e certezas de vida, surge em mim um santo homem, meio Cristo, meio Buda, que se entretém com minhas sempre incertezas. E em minhas insanas ausências, este santo me incita e me conforta: há que ser mulher e semideusa nos tempos de hoje. Há que se ter a compreensão da vida e a dor da saudade, ambas harmonicamente instaladas em nossas potencialidades de ser – ou de seres. Ou não.

Há uma vontade serena de seguir em frente, de sangrar a vida e engoli-la em cavalares dores, feito refrão de bolero. Há uma belicosa inquietação de transformar – tudo e sempre. E há uma incontestável saudade de um tempo em que fomos, a um só tempo, esperança e revolução, certezas e equidades.

Esqueço, às vezes, a divindade que nasceu comigo. Há que ser sábio para recebê-la em nós. Porque não se realiza em doses homeopáticas – desandam temporais sobre nossas verdades e se deságuam raios e trovões, transparências, névoas, negritudes tantas a nos cegar as vontades.

Então eu agradeço ao universo que ainda tenho minha mãe. Porque ela me pega a mão, até hoje, sem qualquer terrena força que não seja a de seu eterno amor por seus rebentos. Eu me vejo nela, ela em mim, uma canção de saudade de um terceiro vértice desta pirâmide de amor.

Vejo na tela em branco a certeza de uma felicidade plena. Ainda que meus hormônios da adolescência e minhas juvenis certezas da imortalidade tenham feito seus naturais estragos, ressuscito hoje uma mulher de nenhuma resposta – e muitas perguntas. Ainda bem que tenho amigos que me ajudam a decifrá-las. No mínimo, a suportá-las, corroendo as vísceras, essas perguntas…

É um ser diferente, aquele que vê o amigo em todas suas nuances. Não, ninguém é perfeito, nem o mais perfeito amigo de nosso coração. Mas quem se importa? Perfeição é a coisa mais sem graça que existe…

E daí, se nosso amigo mais querido torce pelo time que é nosso arqui-inimigo? Se votou no candidato de um partido oposto à nossa crença, se prefere uma marca de cerveja que não agrada ao nosso paladar? A vida é feita da busca constante de juntar as pontas coincidentes e amenizar as feridas dos confrontos com o sorriso condescendente do viver com o outro, mas nunca em função dele. Sempre em atenção ao conjunto. Este, o desafio permanente.

Gosto de dizer que sou privilegiada, porque meus amigos me perdoam as ausências e me acalantam as feridas. Por isso, gosto de pensar neles como pessoas que são inspiradas por este ser, meio Cristo, meio Buda, que tatuam na minha alma a dimensão maior da palavra viver.