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Arquivo da Categoria  Variedades

01mar

Como nossos pais

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

A gente vive se repetindo – e repetindo outros. Às vezes, nem me dou conta, mas repercuto meu pai, com suas frases inteligentes, sua voz mansa. Bebo na sua mansidão, continuamente. Há uma enorme sabedoria em frases simples como a famosa “o melhor remédio é o tempo”. Talvez porque não há, ainda, como deslindar os mistérios do viver, que a filosofia dos grandes – e pequenos – pensadores não tenha sofrido grandes transformações.

Mas sinto falta dessa efervescência existencial na juventude. Hoje, eles não têm mais muito tempo para pensar. Aos 14 ou 15 anos, seguem sem ter a menor noção do sentido mais estrito da vida. Qualquer que seja ele – ou mesmo a falta de um. Essa meninada linda, com suas roupas de grifes, seus equipamentos eletrônicos e sua música ruim, ainda tem um logo caminho a percorrer na direção da vida propriamente dita. Sem querer cair na armadilha que a idade nos impõe de ficar comparando tempos tão diversos como o da minha longínqua adolescência e o de meus netos, percebo, na intensidade volátil das relações desta faixa de idade, um certo não-viver um pouco mais profundo.

Suicidar-se por amor aos 12 ou aos 16 anos escapa à minha compreensão – e, no entanto, os casos se multiplicam por aí. E, hoje, essas quase crianças fazem terapia, mal se acomodam em famílias de rotinas aceleradas e o viver bem muda muito de sentido. E ninguém remete a Clarice Lispector, pensando que a arte de enfrentar a existência está, justamente, em não se fazer dela nenhum grande projeto, nenhuma grande missão – viver, apenas, metabolizando cada momento. Hoje, a garotada adota “ganchos” estranhos como o mundo fashion, a tecnologia, a fluidez espontânea da chamada cultura pop contemporânea.

É certo que aos 30, esses meninos e meninas vão amadurecer e assumir a fase adulta. Então, sua formação familiar é que vai falar mais alto, seus verdadeiros valores devem aflorar e corrigir rotas, repensar projetos, reunir identidades. E aí, talvez, resida o problema maior, à medida que, ao estereotipar a família pela ausência de equidade e de respeito às diferenças tantas, a sociedade acabe produzindo núcleos de pessoas emocionalmente desequilibradas e imersas em solidão. Nenhuma grande novidade, diga-se. Ainda somos os mesmos.

22fev

É preciso que se dê um tempo

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Estava aqui me lembrando de que não faz muito, vivíamos o turbilhão do final de ano. Gosto desses tempos – parece que as pessoas ficam mais afáveis, sorriem mais, estimulam entre si sentimentos muito bons como a solidariedade, o carinho pelo outro, seja seu igual, seja diferente. Só acho meio estranho porque, assim como chegam muito rápido, também se despedem em questão de momentos esses tempos de alegria – que, segundo minha bem-humorada filha mais velha, têm raiz na expectativa que todo mundo tem de… entrar em férias!

Mas também elas, tão esperadas durante o ano, passam rápido. Então percebo que essa aceleração absurda nos persegue a cada minuto. Outro dia, me peguei brigando com o micro-ondas porque o dito-cujo não aqueceu o leite do netinho em 15 segundos – e tive que colocar mais preciosos cinco segundos. E haja paciência para aguardar esse tempo enorme…

Sem parar um instante com minha lida de avó, lembro-me de que, quando criança, fazíamos ovo quente de manhã porque era o lanche mais rápido – atrás, apenas, do pão com manteiga, claro. Sem contar o tempo necessário para a água ebulir, o ovo ficava exatos cinco minutos cozinhando. Quase comida instantânea! Quem tem cinco minutos hoje para doar? Somos tão estimulados a fazer de nossa vida uma verdadeira maratona, que, nos raríssimos momentos em que podemos parar por minutos – ou algumas horas, por que não? – uma horrível sensação de culpa nos impede de relaxar. “Eu poderia estar adiantando aquele trabalho, poderia estar organizando as malfadadas gavetas do bufê da sala, fazendo alguma coisa útil e, no entanto, tenho meia hora livre e posso ler um capítulo inteirinho do maravilhoso livro do uruguaio Benedetti.”

Mas talvez uma das nossas mais alegres e desafiadoras missões seja a de achar tempo para os amigos. A doce expectativa de tomar aquele café ou aquele chope tão adiado com uma amiga especialíssima, com uma parceira de trabalho, com gente que a gente acha muito gente. E trocamos sorrisos e afagos, lembranças e histórias, trocamos presentes, símbolos, carinho. É nossa singela recompensa pela ausência por tanto tempo.

Mas vejamos: já estamos quase no terceiro mês do ano – e quantas vezes você cumpriu aquela promessa do famoso “vamos nos ver mais”? O Carnaval já passou, já está chegando a Páscoa e ainda não conseguimos nos organizar para estar mais tempo com quem amamos. Então, ligue para sua mãe, vença a preguiça e vá tomar dois chopes com as suas amigas, seus amigos, que o tempo, ele mesmo, é impiedoso inimigo. Passa correndo, sem deixar vestígios – só saudades.

01fev

Certos leitores

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Às vezes, você escreve sobre temas aparentemente irrelevantes – mas que, sem que você se dê conta, acabam se encaixando como uma luva em alguém que você nunca viu na vida. Como certa vez, quando comentei sobre os pássaros que sempre observava nas árvores em frente à agência em que trabalho. Várias vezes ao dia vou até o pátio para espiá-los, e contava isso em meu texto, como quem reportava uma necessidade da alma.

Gosto mesmo de observar passarinhos, achar aqueles de cores diferentes, de canto mais suave ou trinado mais estridente, de escuros bicos ou branca penugem. Adoro descobrir novos cantares, mas não passo disso, desse amor de instantes, sem compromisso nem vontade de saber que tipo de pássaro é, o que come, a que família pertence ou que região o habita.

Comentava, então, sobre a preciosidade desses pequenos momentos em que desfrutamos da presença de alguém, gente ou bicho, com tamanha intensidade e alegria que poderia ser este nosso único alimento do dia. E eis que alguém se identifica com esse sentimento, a ponto de me escrever longa mensagem sobre isso. A pessoa não se contenta, porém, em tecer elogios ao texto e à autora: quer me contar a história de seu papagaio de estimação e escreve, verso por verso, as músicas que ele garantia que o bichinho cantava – algumas do Legião Urbana e do Chico Buarque, acreditam? Eu, não. Até porque, cá entre nós, ele não se deu o trabalho de digitar as letras – atacou de Ctrl C, Ctrl V, algum site de cifras musicais.

Mas, depois de Eduardo e Mônica e Apesar de Você – o tal papagaio tinha mesmo uma veia meio revolucionária, a julgar pelo repertório –, o meu admirador pede, educadamente, para me incluir no seu mailing de “amigos da literatura”. Respondo, agradecendo e, claro, permitindo a inclusão de meu endereço em sua lista. Vai daí que…

Há mais ou menos dois anos recebo, religiosa e diariamente, às vezes mais de uma vez por dia, poesias, discrepâncias, piadas, horóscopo (o cara também é astrólogo ou coisa que o valha), predições as mais diversas e, pior de tudo, o que ele chama de “verdades” sobre as dificuldades de todos nós, do álcool às drogas, do casamento às restrições da velhice. A melhor de todas chegou hoje em forma de frase de efeito: “Quando pensar em consumir (drogas, álcool ou mesmo estourar o cartão no shopping), dê um jeito de sumir”. Fico aqui me perguntando em que raio de viés aconteceu algum ponto em comum com o meu caro leitor. São os mistérios do verbo.

25jan

Três anos de impunidade

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Já falei sobre isso, de como não consigo esquecer aquele domingo. Por ironia do destino, acordara às cinco da manhã para fazer café para meu irmão, que estava voltando para Santa Maria após uns dias de férias por aqui. Depois das costumeiras e chorosas despedidas, decidi dormir um pouco mais. E me deitei ao lado de um alemão que parecia nem respirar, tão profundo era seu sono.

Mal tento fechar os olhos e, no criado-mudo, percebo que meu celular vibra loucamente, avisando de repetidos posts nas redes sociais. Um professor de jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria, que me deu aulas de redação e de jornalismo literário, era um dos mais insistentes: morava próximo à Boate Kiss e, àquela hora, já contava os caminhões que transportavam os corpos que estavam sendo retirados do incêndio.

Demorei alguns segundos para entender o que estava acontecendo e, então, fui tentar ver os noticiários da TV. Nada, ainda – as equipes das emissoras nacionais acabariam chegando à tarde e à noite à minha tão machucada Santa Maria. Pouco a pouco, fui anotando os nomes dos jovens de minha nada pequena família e tentando contato para saber se estavam todos bem. Uma angústia sem fim.

Naquela manhã de domingo, 27 de janeiro de 2013, a cidade toda madrugou. Arrancadas da cama por sirenes e desespero, as pessoas tinham apenas uma coisa em mente: saber se seus amados jovens estavam na boate. Entre mil e 1,5 mil deles estavam lá, compartilhando um espaço adequado para 600 e pouco. Quando o fogo começou, muita gente correu para o lugar errado – pensando que havia uma saída nos fundos, aquela gurizada linda, a maioria universitários, correu para a morte, embretados no pequeno corredor que dava acesso aos banheiros.

Mas às cinco e pouco da manhã, eu não sabia, ainda, de nada disso. Queria apenas ter certeza de que meus sobrinhos estavam bem. Não imaginava a extensão daquela tragédia que nos roubou, impunemente, 242 jovens e feriu quase 700. Foi a maior, em número de mortos, nos últimos 50 anos no Brasil, a terceira maior do mundo, em se tratando de casas noturnas.

Nesta quarta-feira, dia 27, a Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria denuncia o caso ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Até agora, apenas quatro pessoas (dois sócios da boate e dois músicos) aguardando julgamento pelos fatos. Quatro bombeiros foram julgados e condenados. Nenhum outro agente público foi julgado. Não, não dá para esquecer!

18jan

Em busca de humanidade

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Semana passada fui tomar café da manhã com amigos muito queridos e colegas de trabalho bastante especiais. Sozinho, em uma mesa afastada dos holofotes do lugar, que é muito frequentado por joinvilenses ilustres, um juiz que admiro muito. João Marcos Buch escreve uma notável trajetória como titular da Vara de Execuções Penais e corregedor de presídios da comarca de Joinville. Além de um excelente escritor, com vários livros publicados, e cronista de primeira linha, ele é, antes de tudo, um dedicado profissional, empenhadíssimo no enorme desafio de mudar os ainda muito injustos paradigmas sociais no que diz respeito aos presos e ao encarceramento.

Não são poucos os casos de apenados e familiares que o procuram para agradecer – e ele atende a todos com atenção e sensibilidade. Não raro, relata em suas crônicas casos interessantíssimos envolvendo sua rotina diária de zelar para que as pessoas que têm dívidas para saldar com a sociedade possam fazê-lo com toda a dignidade e com chances de se reintegrar após a pena.

Mas, enquanto Joinville pode se orgulhar de medidas sérias e importantes para humanizar as relações entre presos e sociedade, leio notícias preocupantes envolvendo outros presídios catarinenses. Sei que o problema é bastante grave em todo o País. Sei que a sociedade não tem infraestrutura para cuidar de suas próprias mazelas, e esse é o pior panorama.

Um relatório da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República mostra que auditorias realizadas em agosto do ano passado apuraram condições lamentáveis em cinco unidades prisionais do Estado – em pelo menos uma delas, houve relato de torturas com choque elétrico. Na reportagem veiculada sexta-feira passada, o governo catarinense alega que muitos dos problemas apontados pelo relatório já foram resolvidos. A própria Secretaria de Direitos Humanos admite avanços, mas sugere várias providências.

Não há, claro, como discutir um problema que atinge as vísceras da sociedade em tão poucas linhas. Mas há ao menos dois pontos importantes a destacar: o primeiro é o de que cada cidadão precisa assumir para si o papel de agente social em busca das soluções de que precisa o conjunto a que todos pertencemos. Somos diretamente responsáveis por tudo o que ocorre à nossa volta – se não pela ação, principalmente pela omissão. O segundo ponto é o de que o País precisa de muitos outros João Marcos Buch.