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 03nov 

Outonos

 

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Outro dia,conversava com uma amiga sobre o que gosto de chamar de tempo outonal – aquele momento em que as pessoas não têm mais trabalho formal, os filhos já construíram suas vidas (e asas) e eles passam a ser, para a família, a alternativa, apenas, de alguns finais de semana. Durante os demais dias, esses aposentados se revezam entre as tardes de ócio, brioches e lembranças – com sorte, ainda com a parceira de tantas décadas ou, quem sabe, na companhia da dedicada ajudante doméstica. Mas, muitas vezes, absolutamente sós. Uma ida ao médico, ao dentista, um passeio no shopping ou aquele raro encontro com amigos – é quase tudo o que resta.

Vejo a cena de desalento. Sobre o antigo móvel da sala de jantar, os álbuns de amareladas fotografias dão o tom sépia a seus dias. Na rotina, a espiadela diária nas imagens de sua vida e as lágrimas de saudade de seus tempos melhores. As notícias de jornal também não ajudam muito a manter o astral. E a televisão, inevitavelmente ligada, é apenas a caixa mágica onde moram o que ele chama de “pessoas de plástico”. Na volta à real, a certeza de que não há mais ânimo algum sequer para vestir aquela roupa bonita, ajeitar os poucos cabelos, ocupar-se com algum conserto doméstico, atividade que sempre lhe fora tão prazerosa.

Só tem vontade de ficar à janela, observando o tempo passar. No fundo, já se despedira de tudo e de todos quando deixou de se sentir útil e amado. E isso foi tão de repente! Um dia, era o dedicado chefe de destacado setor de uma grande empresa, coordenava uma boa e numerosa equipe, tomava as decisões mais importantes, usava todo seu conhecimento técnico e a boa dose de sensibilidade para equacionar grandes desafios diários. Mas, tão rápido que sequer teve tempo de entender, já não tinha mais expediente, os amigos de cerveja e causos foram sumindo, a mulher falecera, os netos já não eram mais as crianças com quem tanto gostava de se ocupar.

Às vezes consegue se perguntar como deixara de perceber o tempo a lhe escorrer por entre os dedos. Mas quase sempre prefere não pensar nisso e se distrai com as lembranças alegres. O único sorriso semanal é apenas um arremedo na dura fisionomia. E só acontece quando a jovem, bela e péssima motorista da casa próxima faz infindáveis manobras para acertar a porta da garagem. Nesse momento, percebe que ele próprio já não dirige – nem o carro, vendido para o neto a preço de avô, e, menos ainda, sua própria existência. Espatifara-se, na bruma do tempo, o seu timão. É a deixa para voltar à janela da vida – e esperar que o verão traga alguma boa surpresa.

 

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