Passados e vilanias
Texto: Ana Ribas Diefenthaeler
Fonte: A Notícia
À porta do escritório simples, mas recheado de livros e lembranças, a menina espia o bisavô estático diante da velha máquina Remington. Pensa que está passando do horário de seu programa favorito na televisão e o escritor não se mexe. Lamenta, mas continua ali, aguardando, perscrutando uma alma que ela tanto admira, que acha parecida com a sua, mas que considera tão distante, temporalmente.
Tudo naquele recinto parece cheirar a mofo – no mínimo a uma rançosa mistura de odores de fumaça de um cachimbo milenar, de suores e calafrios. Nas paredes que já perderam a cor, a eterna flâmula do time do América, reproduções antigas de quadros de gosto duvidoso de duvidosos artistas são o pano de fundo de uma história que se recusa a ser impressa nas amareladas laudas de papel.
Cansada, a menina se agacha até sentar sobre os calcanhares. Mas não desiste de observar o homem que, agora, já se movimenta lentamente na direção do texto. Ao vê-lo começar o telec-telec da máquina, a pequena se aproxima. Puxa um banquinho que o bisavô usava para brincar de tocar violão, décadas atrás, e se posta sobre os ombros de seu ídolo, espionando aquela essência a sangrar.
O título, A História que não Quis, já estava ali, há um tempo incontável. Mas, finalmente, tudo iria ser esclarecido. Aos 14 anos, a magrelinha de negros cabelos queria mesmo saber, afinal, que misteriosa dor se acumulava sobre aqueles já encolhidos ombros. E então ela lê a primeira frase: “Sim. Sou um filho da puta – que tal? Minha mãe biológica trabalhava em uma boate, nos altos da rua 15, nos anos 30, 40. Cresci em meio a prostitutas e cafetões, até ser adotado por uma família de bem, quando já tinha quase 8 anos”.
A menina vê, então, os velhos dedos recuperarem a antiga agilidade e tecerem, feito loucos, uma imensa teia de tramas sobre a vilania dos homens que se aproveitavam daqueles corpos de mulheres, casamentos abalados por traições e filhos bastardos – e mantidos apenas pelo laço social. A tarde termina, as histórias se acumulam, lauda a lauda, até que, noite alta, a menina já dormida sobre o tapete, o homem desperta daquela dolorosa viagem ao passado.
Ao ver o bisavô se preparando para dormir, a menina levanta, espia novamente o texto – que, a essa altura, já passava de 20 páginas – e pergunta, inocente: “Mas, biso… Como era o nome da sua mãe? Você não fala no nome dela aqui.” O velhinho, que acabara de comemorar seus 85 anos, mira naqueles pequenos e negros olhos e determina: “Isso não importa. Putas não têm nome”. E foi para seu quarto, dormir suas culpas.
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