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 28set 

Tempos líquidos

 

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Nas redes sociais (sempre elas), encontro uma interessante foto de um grupo de pessoas se apertando sobre uma cerca que as separava, muito provavelmente, de algum evento artístico. Na imagem, 99% das pessoas empunham seus celulares e câmeras para fotografar a apresentação – menos uma velhinha, que permanece estática, absolutamente absorta, parecendo desfrutar de verdade do espetáculo, pela expressão de alegria em seu olhar.

E a discussão que se segue: o que é mais importante: viver aquele momento único, desfrutar dele, inundar a alma de beleza e arte ou simplesmente captar a melhor imagem para compartilhá-la depois? O que nos é mais necessário, afinal, a arte a nos habitar os poros e as entranhas ou essa mania meio água parada de registrar eventos para, depois, exibir, todo orgulhoso, a foto de seu próprio vazio?

E então me parece que essas gerações da vida virtual são gente em fragmentos. A instantaneidade e o acesso fácil a todo tipo de informação forjam desautores de nossa própria existência. E, agora, o que importa é o que está do lado de fora de nós – de preferência, nada de nós, para tentar desatar.

Ano passado, uma foto de um grupo de jovens ensimesmados em seus celulares – sem ligar a mínima para o quadro de Rembrandt a seu lado – causou muito debate. Estamos mesmo perdendo a capacidade de perceber com plenitude, de acolher, de receber ao menos na pontinha da alma as sensações, as emoções, as cores e os odores da vida?

E então não nos emocionamos mais com Elis Regina cantando Atrás da Porta, de Chico Buarque, em sua primeira parceria com Francis Hime. No máximo, teremos boas fotos de Maria Rita no show em homenagem a sua mãe. Isso se soubermos quem é a mulher que, aos 36 anos, deixou este planetinha azul em silenciosas dores e um imponente hiato, em um tempo em que os dias doíam tanto.

Alguém comenta, então, que a emoção deixa de fazer sentido na vida porque o tempo em que vivemos hoje é líquido. Passa por nós sem deixar vestígios. Mergulhamos em suas cores, mas, ao enxugar os excessos em nosso corpo, restam apenas arremedos de sensações. Nada mais nos chega à essência.

Aliás, a expressão “tempos líquidos”, cunhada pelo sociólogo polonês Zygmund Bauman – que associa o conceito ao amor, em sua obra mais famosa –, talvez traduza melhor as nossas dores de pessoas quase retrôs. E não no sentido da moda, mas da vida: nada mais é feito para durar, para se desfrutar, para se apropriar emocional ou literalmente. Mas, como a velhinha da foto citada no início deste texto, há que resistir – e sair das selfies, um pouco, para mergulhar na magia da vida. E da arte que a define.

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